O causo se deu numa dessas estações ferroviárias muito utilizadas em tempos idos. Ficava coisa de pouco mais de 100 quilômetros da capital paulista, ali no Vale do Paraíba. Se quiserem uma pista do local, direi apenas que a gare em questão é hoje um centro de cultura; e, trem mesmo faz muito tempo que não apita mais naquelas bandas.
Figura importante, quando o trem era nosso principal meio de transporte era o “chefe da estação”. Quase tão importante quanto o delegado, o padre, o juiz e o prefeito, próximo ali no mesmo patamar. Era uma autoridade!
Era só com permissão dele que passageiros e outros acompanhantes podiam se acomodar na plataforma à espera dos comboios, fiscalizava a venda dos bilhetes, recebia as mensagens via telégrafo de outras estações para confirmar os horários. Levantava barreiras e ajustava a mudança de trilhos se necessária. Só com seu apito, o maquinista estava autorizado a ir em frente, isso se tudo estivesse nos conformes.
Por exercer essa função, Belarmino ganhou o apodo de Maquinista, embora, como já vimos, sua função era outra. Morava numa casinha ao lado da estação com mulher e dois meninos que já estavam no ginásio. Imóvel cedido pela companhia de trens
Tinha o maior orgulho da função e por seus relevantes trabalhos, certa vez quando tirou férias, ganhou passagens para ele e família no “Trem de Aço” que fazia o trajeto Rio/São Paulo. Passou uma semana na Guanabara (ainda era estado) e pode ir até ao Corcovado, ao Pão de Açúcar e molhar mulher e menino lá Praia Vermelha. Talvez por essas coisas também tinha muito amor à profissão, à sua estação e aos seus trens.
Seu dia de folga era na quinta-feira quando aparecia na venda do Manezino Perna-torta para uma cervejinha e se fazer presente na mesa de truco posta à frente do estabelecimento e à sombra de sibipiruna quase secular. Ali rolava o truco até o finalzinho da tarde. Isso quando Juca Manguaça não aparecia para perturbar o ambiente, dar palpites, revelar as cartas de algum participante, filar um cigarro e pedir que financiassem seus goles da “marvada”. Até que um dia se deu mal.
Resolveu, numa mão de truco, dar um palpite quando Belarmino Maquinista dera uma trucada no ouvido de Tião Bigorna:
— Truco, reboque de igreja véia – Tião, diante do blefe, já ia enfiando o rabo entre as pernas quando Juca deu seu pitaco.
— Tá de falso. Tem um valete e duas damas.
Revelado o blefe, Tião veio com tudo em cima de Belarmino e ganhou aquela rodada. Nosso chefe da estação perdeu a boa e enfiou um catiripapo nas ventas do intrometido. Juca Manguaça saiu dali com o nariz e um dos pavilhões auditivos ardendo de fazer dó. Prometeu vingança.
Coisa de um mês depois, nove da noite, Juca Manguaça aparece na estação, de mala à mão, bêbado como um gambá e vai perguntando ao chefe:
— O trem das dez já passou?
Sem muita paciência, Belarmino respondeu:
— Claro que não, ainda são nove horas.
— Obrigado.
Foi como agradeceu Juca Manguaça, mas logo depois…
— Trem das dez já passou?
— Claro que não, são nove e vinte. Mais um tempinho e Juca, novamente:
— O trem das dez já passou?
— Cachaceiro de uma figa, são nove e trinta e cinco, o trem para aqui às dez.
E assim foi, Juca sempre perguntando pelo trem das dez. Até que Belarmino se encheu com aquilo.
— Olha aqui. Fica sentado ali naquele banco e se me perguntar isso mais uma vez, vou lhe encher a cara de porrada e depois ainda chamo a polícia. Viu, bêbado fdp?
Juca foi para o cantinho indicado, levou sua malinha e bêbado como estava num instantinho adormeceu.
Belarmino, pensou, pensou... “Será que esse pinguço comprou bilhete? Está todo arrumado, de paletó e gravata. O safado pegou no sono. Vou deixar ele dormindo para esse cachorro perder o trem”.
O trem das dez chegou, passageiros embarcaram. Foram feitos os procedimentos e com o apito de Belarmino o famoso Trem de Aço partiu para o Rio.
Então Belarmino se sentiu vingado do aborrecimento. “Vou avisar aquele jumento que o trem das dez já passou”.
— Ei, acorda! O trem das dez já passou.
— Passou mesmo? Então muito obrigado, já posso atravessar a linha, tava com medo do trem passar por cima de mim – pegou sua malinha e atravessou a linha rachando o bico de rir.