Fomos estimulados a entrar na conversa poético-literária que se estabeleceu entre a respeitável tríade de escritores composta por Milton Marques Júnior, Hélder Moura e Nevita Franca. É desnecessário enfatizar a honra da provocação considerando o elevado nível do tema e do trio que o abordou.
Tudo começou com um passeio de Milton pelas ruas de Coimbra, cidade que se tornou parte de seu cotidiano desde que lá passou a residir com sua esposa Alcione Albertim em busca de novas experiências e saberes literários, clássicos como eles dois.
O olhar atento e afinado com a poesia, linguagem que se fez presente desde cedo em sua trajetória de professor, escritor, pesquisador e, sem dúvida, de poeta — como já comprovado pelos leitores, alunos e apreciadores de admiráveis epigramas e traduções líricas a que se dispôs criar —, aguçou-se na pulsante erudição de Coimbra. De lá ele vem frequentemente nos brindando com escritos que se originam, como este que aqui abordamos, da observação intrínseca à sua bagagem intelectual. E com os olhos da alma, Milton ora enxerga a poesia humana e urbana do entorno no qual convive às margens do rio Mondego.
Pois bem, o tema que deu origem ao texto “Uma história em dois atos”, publicado no carlosromero.com.br, trata da poesia de rua inscrita nas vias públicas de Coimbra, a que Milton se refere mormente como “grafite”. Ao observar as fotos que ilustraram o texto, clicadas por ele próprio, a ideia que nos veio não foi exatamente de grafitagem, e sim de pichação (talvez porque sejam consagradas mundialmente como "spray graffiti"), atitude que traduz, na maioria, lamentável vandalismo. Sobretudo quando polui e deteriora a aparência de fachadas, monumentos, muros e paredes de uma cidade.
Ainda que a nefasta “mania” possa refletir anseios da população, por meio dos que a praticam, ou reflita sentimentos de amor, ódio, repulsa, revolta, indignação ou mesmo de subversão, não condiz com mínimos princípios de cidadania. Viver em comunidade é como viver em condomínio. Há direitos e deveres em cujo respeito se consubstancia a saúde coletiva. Sem regras, instalam-se a bagunça, o caos, a depredação e a decadência dos valores defendidos na ética e sociologia urbana.
Milton ressalta certa curiosidade e até beleza, com razão, nos ditos pichados em várias ruas e recantos da cidade portuguesa. Alguns inteligentes, perspicazes, como, por exemplo: “Deus é todo mundo sorrindo ao mesmo tempo”, que bonito! E na sabedoria que há em “Amanhã é tarde/Ontem é impossível”, entre tantos outros que desfilam no seu ensaio.
Embora sintonizemos com a estesia que lhe despertou inspiração ao apreciar o panorama coimbrense rabiscado com tais escritos, não conseguimos concordar com pichação em nenhum lugar do mundo esclarecido. Ainda que se considerem como legítimos os brocados inseridos poética ou panfletariamente no cenário de praticamente todas as urbes, há de se convir que neles haja desregularidade cometida contra o patrimônio público.
Em resposta à citação que Milton fez à sua pessoa, o professor Hélder Moura vinculou, em texto subsequente, o caráter das pichações comentadas pelo colega ao perfil anarquista; “virtude” a que se alinha expressamente em obras e ensaios brotados da habilidosa verve em que sua premiada obra vem se consolidando. Contudo, o vínculo enaltecido por Hélder emana da comunhão possível de se estabelecer entre os cidadãos e o que se depreende da atividade dos pichadores. O que claramente se subentende na ênfase dada à citação de notáveis e confessos anarquistas, para os quais tal índole valoriza-se sociopoliticamente bem acima do que dela se imagina.
Ao suscitar personagens de Homero a Platão, de Tolstói a Rimbaud e Jorge Luís Borges, Hélder enfatiza a filosofia anarquista latente em grandes pensadores afins para além do tema em questão.
Pessoalmente, sempre desconfiamos da integralidade das convicções dos que se rotulam com pública veemência como “ateus” e “anarquistas”, em cuja conduta paradoxalmente se verificam lampejos de religiosidade (conceito bem distinto de religião), de urbanidade e solidariedade. Há ateus que se comportam na essência como cristãos, e anarquistas a se portar em vida e obra pautados por respeito e sociabilidade.
León Tolstói / Jorge Luís Borges / Arthur Rimbaud CC0/EFE/Henri Fantin-Latour
Ao ser indagado por seus seguidores sobre como deveriam proceder com segurança na tarefa de pregação e difusão do cristianismo após sua partida, Jesus respondeu: “meus discípulos se conhecerão por muito se amarem”. Nada impôs ao significado do “ser cristão”, apenas considerou o amor aos semelhantes, a tolerância, a compreensão, o sentimento de justiça e igualdade, como resumo de toda sua mensagem. Quantos “ateus” bons, cordatos, generosos, exemplos de humanidade produtiva e contributiva superaram e superam em muito o caráter dos religiosos crentes e praticantes de todas as eras…
Quanto aos anarquistas, há os que se definem como igualmente céticos, mas defendem reivindicações morais, põem-se contra o poder de dominação que aniquila as liberdades individuais, e valorizam teorias que apontam positivamente para o florescimento humano, baseado em ideais de igualdade.
Aqui cabe o clichê “tudo tem limite”. Ao se juntarem para viver em comunidades que usufruem de estrutura construída com contribuições legais e de comum acordo, principalmente sob regime de democracia, os cidadãos devem se comprometer não apenas com respeito pessoal mútuo, mas idem com deferência ao patrimônio de uso e direito comuns. O que nos impele a lembrar da pichação como atitude depreciadora dos bens coletivos e da saúde das cidades.
Entendemos que a objeção à existência de uma autoridade dominante sobre o povo tende a reforçar-se quando o poder e a política que a sustenta não são legítimos, levando os anarquistas a lutar por uma organização social baseada no voluntarismo e na ajuda mútua. Julga-se assim, portanto, ser plausível que haja comunas que vivem sob a égide do anarquismo em que as relações humanas são bem sucedidas e a sociedade civil vive isenta de autoridade política hierarquicamente coercitiva. O que não pressupõe, contudo, a ausência de senso de coletividade exercida com respeito aos bens comuns, à integridade pessoal, ao patrimônio e aos serviços públicos utilizados por todos. Infelizmente, o conceito de anarquismo, vez por outra, está sujeito a interpretações ingênuas e levianas como defesa do caos e bagunça sem leis, regras ou freios à estupidez.
É de se imaginar que a propensão ou adoção da filosofia anarquista possa ser fruto de certo desencanto com a equivocada ocupação do homem sobre a terra, o que gerou tecidos sociais organizados à base de injusta exploração e extrema desigualdade de classes. Assim como a tendência ao ceticismo religioso e ao ateísmo tenha origem na decepção perante religiões institucionalizadas que se fomentam baseadas em dogmas, fanatismo, interesses escusos pelo poder, a adotar princípios de fé distantes da razão, da ciência que se inspiram em escrituras ultrapassadas, concebidas para tempos idos de barbárie e ignorância.
Voltemos ao foco temático da salutar “conversa” para a qual fomos convidados, à parte de considerações filosóficas e conceituais, pois o que o professor Milton quis nos transmitir foi a carga de poesia e de sabedoria descortinada pela reconhecida argúcia e profundidade de seus conhecimentos, ao contemplar a pichação coimbrense. São expressões de inegável valor que conclamam à realidade por vias poéticas, sábias ou de justo protesto, e não necessariamente nos fazem tirar os olhos das estrelas com que tanto sonhamos, acordados ou não.
Quem sabe foi esta possibilidade de “sintonia de pensamentos” que atraiu o professor Hélder Moura a compor variações sobre o tema escolhido por Milton, quando disse: “as ruas de Coimbra têm essa espécie de comunhão entre as pessoas, e nisso está a genialidade do seu texto, muito mais do que a expressão do anarquismo que permeia as manifestações daqueles que emergem de seus próprios escombros para expor suas opiniões em forma de versos, pejados dessa anarquia que só a arte propicia".
Na possibilidade desta comunhão, Hélder parece não conseguir imaginar que os anarquistas, os pichadores, os grafiteiros, e todos os que produzem alguma expressão de poesia não possam ter pés no chão e olhos no céu. Desde os mais remotos autores que destaca: “o próprio Platão foi se valer de poetas como Homero, e toda a sua anárquica obra, da Odisseia à Ilíada, inclusive apropriando muito de suas veias poéticas para compor o corolário de sua própria obra [...] Pelo menos em minha humilíssima opinião de leigo, entre um anarquismo e outro, estavam as estrelas.”
No texto da professora Nevita Franca, autora da segunda variação sobre o mesmo tema, vem tempestivamente à lume o “Grafite”. Que pode ser confundido com pichação, e por isto vale lembrar que entre ambos há considerável distância, mesmo que nas ilustrações do texto de Milton figure algum tipo de grafite. Este, sim, denota-se como expressão de arte “civilizada”, respeitosa, na medida em que ocupa espaços permitidos, adequados, ou mesmo abandonados, para veicular, como diz Nevita, com “anárquica vocação de independência e arrojo, seu sonho de uma vida acima das estrelas”.
A professora viu reconhecido nos textos em epígrafe seu viés anárquico e até sugeriu que “todo mundo tem um pouco de anarquista e cético”. Muito oportunamente mencionou citação de Aristóteles que se adequa ao tema:
“diferentemente da família e da aldeia que une os indivíduos por laços de consanguinidade ou interesse, a cidade os une com o fim de fazê-los viver “como convém que o homem viva” [...] Somente na cidade é que o homem pode realizar a capacidade inscrita em sua essência”.
Sim, Nevita, é verdade. Mas jamais devamos esquecer de que as cidades, como dito anteriormente, são como condomínios, submetidos a regras de conduta que possam garantir reverência mútua, apreço pelo bem individual e coletivo, preservação de um habitat saudável e digno de se morar, para evoluir sonhando, seja com os pés e os olhos no chão, ou nas estrelas de um céu que a todos proteja e inspire. Para que, conforme você escreveu, “o homem habite em poesia, como diz Holderlin, no título de um poema”. E assim possa “viver de forma autêntica e profunda, estabelecendo uma relação mais íntima e significativa com o mundo, consigo mesmo e com os outros”.
Vemos com dificuldade a quebra do elo que une cidade e comportamento, ainda que ocorram maneiras de extrapolar o habitual, o convencional, como destaca a professora Nevita:
“para falar a partir do coração das coisas, do íntimo, do profundo, pressentindo o mistério que elas encerram [...] fornecer indicações práticas para mudanças sociais [...] realizando um “movimento inesgotável de busca [...] em que a arte vem para exprimir o que está nas entrelinhas”.
Sim, professora, e aqui reforçamos o poder que a arte tem de sintetizar tantas linguagens em uma só, como tudo aquilo que Van Gogh quis dizer nas botas do camponês, onde você viu, genialmente, algo de grafite!
Neste fluxo de pensamento, você bem reitera a grandeza de linguagem que há em diversas maneiras de manifestar a emoção, seja na ficção literária, que, “por mais estranha, por mais mentirosa, expressa alguma verdade”. Como nos muros onde a sensibilidade clarividente de Milton se fez penetrar estimulada por seu amor à poesia.
E Nevita vai mais além ao pontuar sua entusiasmada escrita com a obra de Banksy, “grafiteiro, pintor, ativista político e diretor de cinema inglês. Sua arte de rua satírica e subversiva é exposta em locais públicos como paredes e ruas.”
O que nos fez lembrar do brilhante muralista Eduardo Kobra, brasileiro com projeção internacional pelos magníficos painéis que cria em todo o mundo, inclusive o que foi registrado em 2016, no Guinness Book, como “o maior grafite já realizado no planeta”. Kobra foi, a propósito, objeto de uma Pauta Cultural do Ambiente de Leitura Carlos Romero, em junho de 2022. Tanto quanto vale lembrar do baiano-amazonense Raí Campos, em cujo trabalho se entoa um belo canto em defesa da causa indígena.
Nevita então coroa seu texto voltando às palavras de Hélder Moura, para quem as “noites sem dormir geram grandes ideias ou grandes monstros”:
“Penso que grandes ideias são quase sempre monstruosas. Desafiam o status-quo, questionam normas estabelecidas, desvelam crenças arraigadas, expõe o mofo de pensamentos, ameaçam os que têm interesse em manter o poder ou a ordem, gera resistência e medo nos que se sentem confortáveis instalados na mediania”.
Por fim, amigos Milton, Hélder e Nevita, parabenizo-os pela fértil peleja em que atrevidamente me inseri, embora provocado por convite ao qual inicialmente fui tomado pela timidez, mas vencido pelo assombramento em devoção às artes que tanto nos encantam. Assim, como apaixonado por tudo o que provoca a boa emoção, a exemplo do som da escrita e da música que fala, acabei por não resistir. Se não dei conta, me desculpem.
Aqui me despeço, grato por participar e poder com vocês sempre aprender, tal como inevitavelmente acontece na condição de leitor e fã que sou do que produzem.
Acreditamos que exista em nosso oportuno diálogo um coro uníssono, mesmo que em caminhos distintos, contrapostos como numa fuga a várias vozes. Um coral a louvar à arte como expressão máxima da capacidade do ser. Afinal, tudo é arte na vida que pulsa calada ou gritante, pintada, pichada ou grafitada. Arte é todo efeito que se produz na elevação dos sentimentos, nos faz melhores, independente da intenção do artista, da recepção, da impressão da crítica, do estilo a que se enquadre, da definição estética ou das verdades que possa arrancar de cada espectador. Por mais que desejemos defini-la, a arte escapa aos compêndios, tratados, aos mais vetustos saberes, principalmente quando é capaz de se acomodar no aconchego íntimo das sensações de quem sequer supõe o que ela seja.