A Paraíba nem sempre deu o devido reconhecimento a nomes do Estado que se destacaram na cultura nacional. Alguns casos notórios são os do biólogo campinense Mello Leitão, do romancista José Vieira e do escritor e jornalista José Maria dos Santos. Mello Leitão, cientista respeitado mundialmente, teve o seu nome preterido para batizar o Jardim Botânico na Capital por outro sem qualquer vinculação com a ecologia
e sem se levar em conta que foi na Mata do Buraquinho que Mello Leitão desenvolveu pesquisas sobre aracnídeos de repercussão internacional. Esta falta de consideração para com o renomado cientista paraibano não alcançou os capixabas que, em 1949, criaram no Espírito Santo um Museu Mello Leitão. O escritor José Vieira, ainda hoje, é um nome praticamente desconhecido pelos paraibanos, embora tenha escrito romances elogiados pelos principais críticos literários da sua época, como José Veríssimo, Agrippino Grieco, Álvaro Lins, Tristão de Athayde, Wilson Martins e Antônio Cândido. José Maria dos Santos, apesar de ter sido um dos mais destacados intelectuais da Paraíba no século passado, quase nunca é citado quando são relacionados os principais autores paraibanos.
No caso de José Maria dos Santos, o esquecimento do seu nome na Paraíba é justificado, por alguns, pela sua ausência do Estado em grande parte da sua vida, argumentação que é refutada pelo ex-governador Tarcísio Burity:
“A sua ausência do meio em que nasceu (1877) para ingressar na carreira militar, no início de suas atividades, forçando a sua ida para o sudeste do país, não justifica a atitude. O pernambucano Oliveira Lima passou mais tempo de sua vida fora não só de Pernambuco mas até do país, como diplomata e historiador. Nem por isso deixaram os pernambucanos de conhecê-lo e admirá-lo. Tal como José Maria dos Santos que viveu vinte anos na Europa.”
Há setenta anos, um jornalista do Correio da Manhã do Rio de Janeiro, ao fazer o necrológio de José Maria, apresentou outra razão para o esquecimento do nome do escritor paraibano: “Vários motivos explicam esse esquecimento. Entre eles: José Maria dos Santos era preto. Talvez lhe tivesse sido mais favorável o destino no tempo em que o preto Rebouças era convidado aos bailes do Imperador”. Na Paraíba, muitos somente tiveram notícia de José Maria dos Santos, quase meio século após a sua morte, através de uma obra do jornalista e cronista Gonzaga Rodrigues incluída na série “Nomes do Século”, publicada, em 2000, pela Editora A União.
Ao iniciar o seu texto, Gonzaga Rodrigues relatou que somente veio a tomar conhecimento de José Maria dos Santos ao ler uma coletânea de contos, publicada pelo escritor Graciliano Ramos, na qual os autores foram selecionados pelo seu Estado de origem.
“Em 1957, já me iniciando nos assuntos da Literatura, particularmente nos santos de casa, tive um sobressalto com o nome escolhido por Graciliano Ramos para representar a Paraíba na antologia de contos e novelas [...] Nenhum dos nomes esperados. Nenhum dos consagrados ou mesmo conhecidos. Nem José Lins do Rego, nem José Américo, nem José Vieira [...] José Maria dos Santos foi o nome em que Graciliano se fixou. E quem era? [...] Gente nova?
Fui a José Leal, o mais velho da redação e grande conhecedor dos homens e da história do seu Estado: ‘Deve ser um preto que deixou a Paraíba há tempo, que milita ou militou no jornalismo do sul e escreveu qualquer coisa em livro’. Celso Mariz também não adiantou muita coisa [...] Abordado, José Américo lembrou-se de uma vez em que José Maria esteve no seu gabinete, no Ministério dos anos 30, pedindo uma passagem de navio, que ele negou [...] 'É um jornalista que atuou no Sul, tem alguns ensaios históricos, um negro'”.
Fui a José Leal, o mais velho da redação e grande conhecedor dos homens e da história do seu Estado: ‘Deve ser um preto que deixou a Paraíba há tempo, que milita ou militou no jornalismo do sul e escreveu qualquer coisa em livro’. Celso Mariz também não adiantou muita coisa [...] Abordado, José Américo lembrou-se de uma vez em que José Maria esteve no seu gabinete, no Ministério dos anos 30, pedindo uma passagem de navio, que ele negou [...] 'É um jornalista que atuou no Sul, tem alguns ensaios históricos, um negro'”.
José Maria dos Santos nasceu, em 1877, na então Cidade da Paraíba. Era filho de um “Voluntário da Pátria” da Guerra do Paraguai, que trouxera anotação de herói lavrada pelo comandante do seu batalhão e, após o conflito, se estabeleceu como tabelião de notas na Capital da Província. José Maria, após os estudos básicos na Paraíba, decidiu ingressar nas forças armadas. Foi para o Rio de Janeiro cursar a Escola Militar. Participou de expedições em Canudos e no Acre. Em determinado momento, ainda no século 19, deixou o Exército, ao sentir que não era aquela a sua verdadeira vocação. Fixou-se no Amazonas e passou a atuar na imprensa de Manaus.
No início do século 20, José Maria dos Santos já se transferira para o Rio de Janeiro, onde passou a trabalhar nos principais jornais da cidade. Pouco tempo depois, viajou para a Europa, onde permaneceria por cerca de duas décadas. Em Paris, José Maria se casou e conseguiu feitos extraordinários, ser redator do prestigioso jornal francês Le Figaro e ascender à chefia de redação do Petit Parisien. Para Gonzaga Rodrigues, “que se saiba, é o único brasileiro a ocupar uma chefia de redação de jornal estrangeiro”.
Em 1930, já de volta ao Brasil, José Maria dos Santos publicou A Política Geral do Brasil, o seu primeiro livro e a sua obra mais destacada, enfocando o período do Segundo Reinado e o que ele chamou de “a deformação republicana”. Para o jurista Hermes Lima a obra é “admirável”. Não foi menos elogiosa a opinião do historiador José Honório Rodrigues para quem “a Política Geral do Brasil é, sem favor a mais inteligente análise crítica do Segundo Império e da Primeira República”. Sérgio Buarque de Hollanda considerou a obra “além de ensaio interpretativo, uma síntese por vezes sedutora”. Em 1974, em uma reunião do Conselho Federal de Cultura, o historiador Pedro Calmon propôs incluir A Política Geral do Brasil entre os 85 títulos que deveriam fazer parte de uma Biblioteca do Brasileiro Culto e que seriam editados pelo antigo Instituto Nacional do Livro. A lista incluía obras de autores como Varnhagen, Oliveira Lima e Tobias Monteiro.
Em 1942, José Maria dos Santos, já atuando na imprensa de São Paulo, onde permaneceu até a sua morte, publicou outra importante obra Os Republicanos Paulistas e a Abolição. José Vieira, outro esquecido autor paraibano, escreveu sobre o livro: “José Maria dos Santos estuda os sucessos do movimento republicano e abolicionista em São Paulo com a precisão de uma testemunha que tudo houvesse registrado na ocasião”. José Maria ainda publicaria Bernardino de Campos e o Partido Republicano Paulista, Os Fundamentos Reais da Liberdade e Notas à História Recente.
Gonzaga Rodrigues está novamente empenhado em rememorar a figura de José Maria dos Santos e está trabalhando na atualização e no acréscimo da sua obra que fez com que muitos paraibanos viessem a conhecer o seu destacado conterrâneo. Em telefonema, Gonzaga me pediu um antigo artigo de José Lins do Rego sobre José Maria. Remexi os arquivos e o encontrei. Como se trata de um episódio pitoresco passo a relatá-lo a seguir.
No dia 1 de novembro de 1946, o jornal carioca O Globo publicava a seguinte matéria:
“Desaparece conhecido jornalista e escritor – Faleceu ontem nesta capital o conhecido escritor e homem de imprensa José Maria dos Santos. A sua morte teve dolorosa repercussão nos círculos intelectuais e jornalísticos. Por longos anos o nome de José Maria dos Santos esteve em evidência [...] Era natural de Maranguape, na Paraíba.”
No dia seguinte, outro jornal do Rio, o Diário de Notícias, noticiava o sepultamento do escritor:
“No cemitério de São João Batista, realizou-se, ontem, à tarde, o sepultamento dos restos mortais do escritor e jornalista José Maria dos Santos. O extinto era um estudioso dos nossos problemas nacionais, havendo conquistado, graças à sua atividade literária [...] uma posição de prestígio em nossos círculos culturais.”
Dois dias depois, O Globo publicava o seguinte telegrama:
“Redação d’Globo – Rio – Penhorado agradeço as honrosas referências do vosso necrológio, mas peço nele fazerdes três pequenas retificações. Primeira; nasci em João Pessoa e não em Maranguape; segundo, Maranguape fica no Estado do Ceará e não no da Paraíba; e terceiro, continuo vivo, enviando-vos, portanto, as minhas mais vividas e cordiais saudações. — (a) José Maria dos Santos”.
Na crônica O Outro José Maria dos Santos, publicada em O Globo, José Lins do Rego tratou do inusitado fato:
“Manda José Maria dos Santos um telegrama que está vivo e bulindo, em São Paulo, para a grande alegria de todos nós que o estimamos. Mas a história desta sua morte que tanto me tocara, a ponto de lançar-me em artigo para falar de sua grandeza, tem as suas passagens que ficam admiravelmente bem à vida de José Maria. O paraibano tem mesmo fôlego de sete gatos e não será assim pegado com tanta facilidade pelo noticiário.
O curioso é que os seus amigos correram para o seu enterro. Lá se foi, todo de preto, o Américo Facó. O Oscar Soares compareceu, como bom paraibano, ao ofício do enterramento. Mas ao chegar na casa rica, Facó não compreendia as coisas. O grupo humano que ali se congregava não era em nada do seu amigo. Havia um quarto de defunto de gente que Facó nunca vira. Oscar Soares começou a observar. O caixão estendido na sala era uma rica peça de mogno e ouro. Coisa para mais de dez mil cruzeiros. Aquilo não lhe parecia coisa para o nosso José Maria.
E os amigos do escritor que lá foram para chorar o amigo e conduzi-lo ao túmulo, nada viam que tivesse semelhança com o morto que choravam. Afinal Oscar Soares, mais esperto, não se conteve e procurou alguém do velório para que lhe indicasse o filho de José Maria, pois queria abraça-lo. Foi quando lhe apareceu um cidadão de mais de cinquenta anos, o autêntico filho do José Maria que estava estendido no rico ataúde de mogno e ouro.
⏤ Afinal de contas, lhe disse o homem que era o filho, os senhores não serão amigos do meu pai. E como lhe falassem do escritor, o homem aborrecido não se conteve.
⏤ Nada de escritor, meus caros senhores. O telefone não para de me perguntar por esse tal José Maria. O meu pai é o meu pai.
Então Oscar Soares e Américo Facó, os piedosos, ficaram sabendo que o José Maria dos Santos, morto ali na sala num rico caixão de mogno, nada tinha que ver com o grande José Maria dos Santos o que está vivo e bulindo em São Paulo.”
O curioso é que os seus amigos correram para o seu enterro. Lá se foi, todo de preto, o Américo Facó. O Oscar Soares compareceu, como bom paraibano, ao ofício do enterramento. Mas ao chegar na casa rica, Facó não compreendia as coisas. O grupo humano que ali se congregava não era em nada do seu amigo. Havia um quarto de defunto de gente que Facó nunca vira. Oscar Soares começou a observar. O caixão estendido na sala era uma rica peça de mogno e ouro. Coisa para mais de dez mil cruzeiros. Aquilo não lhe parecia coisa para o nosso José Maria.
E os amigos do escritor que lá foram para chorar o amigo e conduzi-lo ao túmulo, nada viam que tivesse semelhança com o morto que choravam. Afinal Oscar Soares, mais esperto, não se conteve e procurou alguém do velório para que lhe indicasse o filho de José Maria, pois queria abraça-lo. Foi quando lhe apareceu um cidadão de mais de cinquenta anos, o autêntico filho do José Maria que estava estendido no rico ataúde de mogno e ouro.
⏤ Afinal de contas, lhe disse o homem que era o filho, os senhores não serão amigos do meu pai. E como lhe falassem do escritor, o homem aborrecido não se conteve.
⏤ Nada de escritor, meus caros senhores. O telefone não para de me perguntar por esse tal José Maria. O meu pai é o meu pai.
Então Oscar Soares e Américo Facó, os piedosos, ficaram sabendo que o José Maria dos Santos, morto ali na sala num rico caixão de mogno, nada tinha que ver com o grande José Maria dos Santos o que está vivo e bulindo em São Paulo.”
José Maria dos Santos só viria a falecer, em junho de 1954, em São Paulo, oito anos depois daquela sua primeira “morte”. Era um nome que a elite cultural paraibana desconhecia. “Desconhecia por ignorância ou descaso?”, indagava Gonzaga Rodrigues na sua obra. Embora tardiamente, em 1992, depois de quase quatro décadas do seu falecimento, o Instituto Histórico e Geográfico Paraibano resolveu reverenciar o notável escritor paraibano tornando-o Patrono da cadeira de número 1 da Instituição e criando uma Comenda do Mérito Cultural denominada José Maria dos Santos.