Um dos erros que se comete frequentemente, com relação aos textos antigos que envolvem mitologia, é achar que se trata apenas de um t...

Mais lições do mito

mitologia zeus
Um dos erros que se comete frequentemente, com relação aos textos antigos que envolvem mitologia, é achar que se trata apenas de um texto literário ou de uma fábula tola e não verdadeira. É preciso que se repita que, na sua origem, mito é uma narrativa de uma verdade possível naquele instante em que ela, a narrativa, foi criada, em princípio, oralmente. Por outro lado, quanto mais recuado o texto mitológico, mais carregado de um sentido de religiosidade.
Diga-se, como exemplo, que invocar as Musas para Homero (Ilíada e Odisseia) ou para Hesíodo (Teogonia e Trabalhos e dias), autores do século VIII a. C., nos primórdios da escrita alfabética grega, não é a mesma coisa que Virgílio ou Ovídio, no final do século I a. C., invocando as filhas de Zeus, nos seus respectivos poemas épicos, Eneida e Metamorfoses. Naqueles dois, que estão mais distantes, não há como separar o sentido religioso do mundano, pois eles vivem num mundo que se explica pelo fenômeno das divindades, sobretudo as olímpicas. Para Virgílio e Ovídio, separados do mundo homérico por quase 800 anos, a invocação é um dos recursos literários, tomado de empréstimo a Homero, como parte integrante da estrutura do poema épico. Os dois poetas latinos são poetas de gabinete, porque os seus poemas já nascem escritos, não na modalidade oral. Ressalte-se que chamá-los “poetas de gabinete” não diminui, um grau sequer, o seu talento.

A expressão do divino e do religioso tem o sentido de explicar todos os fenômenos que envolvem o homem na sua relação com a natureza, por não haver como, naquela ocasião, ser explicado de outro modo, senão pela intervenção de uma entidade poderosa que encarna determinado fenômeno natural. Assim, Zeus é o “Ajunta-nuvens” (νεφεληγερέτα) ou “O que se compraz com o raio” (τερπικέραυνος), para expressar essas duas forças físicas da natureza – o trovão e o relâmpago. Posteriormente, as expressões ganharão sentido com a explicação científica do fato: nuvens carregadas de energia se chocam, daí surgem o relâmpago e o trovão, primeiro aquele, depois este, considerando que a luz se propaga numa velocidade maior do que o som.

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Posídon ▪ Museu de Atenas
Já Posídon é “O que abala o solo” (ενοσίχθων), estabelecendo-se aí uma relação intrínseca entre os terremotos e ο fundo do mar. A explicação posterior do movimento das placas tectônicas mostra o quanto o mito não é arbitrário ou uma narrativa vazia de significado. Se Afrodite é a deusa que, surgindo no mar, faz a vida na terra ser possível, porque por onde ela passa tudo floresce, o mito credita isto à força do amor eros, que ela encarna como divindade. Ora, a teoria da evolução das espécies não fez senão demonstrar, mais uma vez, como a intuição dos helenos estava certa. Tendo a vida nascido no mar, de lá saiu para a terra, primeiro na forma vegetal, de modo a se criar a condição sine qua non, para que ali a vida animal pudesse permanecer, obtendo o alimento necessário ao seu sustento.

Todos esses elementos se encontram na Teogonia de Hesíodo, texto poético do século VIII a. C., que, a nosso ver, estabelece mais do que um mero politeísmo, uma forma primitiva de panteísmo, com os deuses sendo criados e agindo dentro do mundo, no caso a Terra, não fora dela. Ao mesmo tempo, observa-se que os deuses são muito mais expressões das forças da Natureza, formando com ela uma unidade, não uma dicotomia.

Talvez eu já tenha escrito sobre isso, tantos foram os textos a respeito do mito que já veiculei por aqui. Retorno ao assunto e peço desculpas, se for o caso de já haver feito, neste espaço, alguma referência ao fato. A Teogonia, de Hesíodo, é um dos poemas mais importantes de que o mundo ocidental tem notícia. Não é por ele estar nos primórdios da escrita alfabética, que depois ganhou o ocidente, tendo nascido, provavelmente escrito, assim como
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Odisseu ▪ Museu do Vaticano
nasceu escrito outro poema seu, Trabalhos e dias. Também não é por ser a Teogonia um poema didático, no sentido de que há uma explicação da origem dos deuses e de suas genealogias, o que não vamos encontrar em Homero, seu contemporâneo, cujo intuito é narrar um episódio acontecido no início do décimo ano do cerco dos Argivos à cidade de Troia (Ilíada) ou o retorno de Odisseus a seu lar, para completar a educação do filho, Telêmaco (Odisseia). Estas narrativas se encontravam, há muito, na oralidade, e por essa razão, já haviam sido devidamente absorvidas pelo público a quem elas se destinavam, não havendo, portanto, necessidade de qualquer explicação a respeito dos deuses e dos heróis. Não se explica, sequer, na Ilíada, a causa da guerra de Troia. O leitor que se esforce para ir colhendo, ao longo da narrativa, os fragmentos de textos alusivos ao fato, para depois, ao modo de um bricolage, montar as peças do quebra-cabeça.

A importância da Teogonia consiste no fato de que o poema é uma lição de justiça e de equidade, construída em uma nítida gradação da narrativa. A teogonia, origem dos deuses, a partir da tensão entre as forças primevas, Caos, Gaia, Tártaro e Eros, passa a uma teomaquia, uma luta entre deuses, expressa pela titanomaquia, para chegar a uma cosmogonia, o estabelecimento de uma ordem universal, e só então definir a descendência dos humanos, antropogonia, vindos dos deuses. Ou seja, da origem dos deuses, se superpondo ao caos inicial, surge uma luta pelo poder que só terminará quando se enfrentar uma guerra contra o arbítrio e a prepotência. Terminada a guerra, vencida pelos que se puseram contra a injustiça, é a hora de se dividir o poder, através de alianças, que são as hierogamias de Zeus,
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Eros ▪ Museu Britânico
de modo a se organizar as relações que permitam o funcionamento da vida humana, obedecendo a determinadas leis, que são como cláusulas pétreas. A obediência deve ser, sobretudo, com relação aos limites que cada um dos contemplados com o poder obrigam-se a observar, de acordo com as suas atribuições intrínsecas. Para se impor limites aos humanos, há que se impor limites a quem vai governá-los. Eis a grande lição de equidade.

Como princípio básico, uma divindade, por mais poderosa que seja ou por mais tentada que esteja, não pode exacerbar o seu poder e se intrometer nos domínios do outro. Em síntese: cada faz o que sabe e dentro da sua área de atuação. Ultrapassar os limites é a atingir o terreno perigoso da desmedida. Estas duas concepções são caríssimas para os gregos: o métron (μέτρον) e a hýbris (ὕβρις). De tal modo elas são importantes que o dístico no pórtico do templo de Apolo em Delfos — Conhece-te a ti mesmo (γνῶθι σεαυτόν) — pode ser entendida com menos complicação do que se tem interpretado: Conhece-te e não só conhecerás os teus limites, também não os ultrapassarás. Ultrapassar os limites requer assumir a responsabilidade proveniente da desmedida, o que significa, portanto, uma punição, não porque os deuses são vingativos, mas porque a pessoa, ela mesma se impôs a punição ao cometer um erro, que não deveria ter cometido.

Ora, a teomaquia, traduzida na Teogonia pela titanomaquia, é a luta de Zeus contra o pai e os tios. É luta fratricida contra o arbítrio, a violência e a prepotência. Numa palavra, contra a injustiça. Dessa luta, vencida pela nova geração liderada pelo filho mais novo, Zeus, origina-se, ao mesmo tempo, a tipologia do herói, calcada na sua trajetória, sendo o primeiro
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Zeus ▪ Museu do Louvre
de todos os heróis (vide a “raça dos heróis”, em Trabalhos e dias, criada para combater a injustiça), e a ordem do mundo, a cosmogonia. Zeus, ao libertar os irmãos, devorados por Cronos, o pai, torna-se mais velho que os irmãos e o pai deles todos, daí o seu epíteto revelador de “Pai dos homens e dos deuses” (Ζεὺς πατέρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε).

Para não me alongar tanto, pois o texto, apesar da sua simplicidade aparente de um mero catálogo genealógico, é de grande complexidade, direi que, após a vitória sobre a prepotência dos titãs, Zeus engole Métis, sua primeira esposa, para ter dentro de si a inteligência e a astúcia, podendo, assim, assumir a paternidade da inteligência, ao parir Palas Atena, nascida de dentro de sua cabeça, aberta com o machado de Hefestos. Em seguida, com sua segunda esposa, Thêmis, ele produz o destino humano, com as Parcas, determinando o nascimento, a existência e a morte, Cloto, Láquesis e Átropos, respectivamente, e as Horas, irmãs do destino, tornando-se o pai da Justiça, da Paz e da Boa Lei – Dike (Δίκη), Eirene (Εἰρήνη, Irene) e Eunomia (Εὐνομία). Elas são as Horas (Ὡραι, do verbo ὁράω, significando “ver, fixar os olhos sobre”), guardiães da porta do Olimpo, presidindo a harmonia da vida dos homens e da cidade. A Justiça (Δίκη) sendo uma das Horas, não pode, portanto, nunca ter os olhos fechados. Antes haverá de tê-los bem vigilantes, para poder coibir os abusos. Aos homens fica, pois, determinado que terão uma existência limitada entre o nascimento e a morte, e lhes caberá, fazer a justiça, o que não ocorrerá sem que as boas leis convirjam para a busca da paz.

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Héstia ▪ Museu Pushkin
Por fim, Zeus promove a divisão do poder, concedendo a cada um dos irmãos, de que ele se fez pai, os limites dentro da atribuição de cada um: a Posídon concedeu os mares; a Hades, o mundo inferior, que tomou metonimicamente o seu nome; a Hera, a deusa-mãe, o poder sobre o nascimento, o casamento e a família; a Deméter, a alimentação; a Héstia, o fogo sagrado do lar e da cidade, que tudo purifica. A si, o poder supremo, mas sem intervir nos domínios dos outros e sem, sobretudo, quebrar o que foi estabelecido como lei e como destino por ele mesmo.

Vê-se, portanto, que o mundo grego, num texto dos primórdios, texto seminal do mundo ocidental, traz em si as concepções essenciais de uma sociedade que procura ser justa. E ela reside, sobretudo, no respeito às leis estabelecidas, procurando agir com equidade e comedimento. Entenda-se por comedimento não só o métron, mas a reflexão, a sofrosýne (σωφροσύνη), sem o que a paz jamais existirá.

A boa lei garante que os julgamentos se façam com equidade, buscando a justiça não a perseguição ou a vingança, como mostra Ésquilo na sua trilogia Oresteia (Agamêmnon, Coéforas e Eumênides). A absolvição de Orestes, na peça Eumênides, a partir do princípio da dúvida que favorece o réu, transforma as divindades perseguidoras, as Erínias, filhas do sangue derramado de Uranos por Cronos, nas Eumênides. De divindades infernais que buscam a condenação por vingança, elas se tornam divindades benfazejas, cuja boa força, tradução de seu novo nome, em grego (Εὐμενίδες), vai servir à causa da Justiça. É profético o desenlace da Oresteia, quando Ésquilo, pela boca das divindades já transformadas, apregoa que a injustiça conduz à guerra, grande prejuízo à sociedade, sobretudo pela matança de tantos jovens. Só a Paz, já epitetada muito justamente por Hesíodo de “viçosa, vicejante” (τεθαλυῖαν), é que pode gerar a prosperidade, porque a Paz não se faz sem a Justiça.

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Erínia (eumênide) adormecida ▪ Palazzo Altemps, Roma C. Rodatto, CC BY-SA 2.0
Abramos um parêntesis para recordar o que diz Ernst Haeckel sobre guerras, injustiça e a fingida moral social (Os enigmas do universo, Paris, Hachette; BNF, fac-símile da edição francesa de 1902, Capítulo XV, Unidade da Natureza, p. 312, em tradução nossa):

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Ernst Haeckel
“A cada ano, milhares se matam mutuamente pela guerra, e os preparativos necessários a esse assassinato em massa absorvem, no seio das nações mais civilizadas, professando a caridade cristã, grande parte da fortuna nacional. E entre estas centenas de milhares de homens que morrem anualmente, vítimas da civilização moderna, há alguns absolutamente notáveis, fortes e trabalhadores. E se falará ainda de ordem moral do mundo!”

É importante ressaltar, ainda, que o fato de o mito de Prometeu (Teogonia, versos 507-616) anteceder o mito da titanomaquia (versos 617-721) não é gratuito ou um episódio sem conexão com o que virá adiante. Se o mito de Prometeu, em Trabalhos e dias, antecede os males do mundo e a criação das raças, que vão, paulatinamente, se degradando, da harmonia à desarmonia, simbolicamente do ouro ao ferro, na Teogonia, o mito de Prometeu tem como objetivo demonstrar como a desobediência – até a titanomaquia nada havia estabelecido – é passível de uma punição, tendo em vista que o mundo, diante do esfacelamento da Boa Lei, que garante a Justiça e a Paz, tende a retornar ao Caos. E o Caos, como deixa entrever Hesíodo, é a boca aberta, vazia, desmesurada, para o nada.

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