“Quem quer compreender a poesia, deve ir ao país da poesia. Quem quer entender o poeta, deve ir ao país do poeta.” Goethe Em junho ...

Irão: Uma viagem ao País dos Tesouros e dos Mistérios

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“Quem quer compreender a poesia, deve ir ao país da poesia. Quem quer entender o poeta, deve ir ao país do poeta.”
Goethe

Em junho de 2002, a convite da Iranology Foundation of Tehran e da Secção Cultural da Embaixada da República Islâmica do Irão em Lisboa, participei no I Congresso Nacional de Estudos do Irão com um trabalho escrito, integrado nos Estudos de Iranologia da Universidade de Teerão, capital da República Islâmica do Irão, metrópole localizada no sopé dos montes Elburz, a 1.220 metros de altitude e a uma distância que pouco ultrapassa os 250 km da orla do mar Cáspio.

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Wikimedia ▪ adapt: carlosromero.com.br
A minha procura do “oriente donde vem tudo, o dia e a fé, pomposo e fanático e quente, o oriente budista, bramânico, sintoísta”, como disse Fernando Pessoa, passava basicamente por conhecer aquela Pérsia mítica e mística que me povoava, desde a juventude, os sonhos mais intrínsecos. As cúpulas turquesa que pontificavam na obra Mil e Uma Noites (alf laila ua laila), os esplendores perdidos de Persépolis e Parsagada, a poesia inefável de Rumi, Hafiz, Sa’adi, Ferdusi, Nezami, Khayyam, Rudaki e tantos outros, faziam, desde há muito, parte da minha matriz interior. E o Irão que eu revivo — aquela terra a que Michelet apelidou “a grande estrada do género humano” — é o Irão que se tornou morada de saberes,
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Imagens A. Rodrigues
tesouros e mistérios, que os séculos a forma lhe trouxeram modelando sonhos nele erguidos, do pasto para a poesia, do remanso da sua gente fechada, sóbria, especiosamente sentimental, culta, amável e de uma generosidade iniludível, portadora de uma herança cultural e histórica fabulosa.

Reza um velho aforismo persa: “o Irão tem um poeta para cada estrela do céu”. O dom da imaginação poética e artística revelam-no através de duas obras fundamentais da sua literatura, escritas no século XV e que chegaram até nós acompanhadas de iluminuras de um excecional valor artístico. Um desses livros, Kalila e Dimna, crê-se ter influenciado La Fontaine ao compor as suas Fábulas. Os escritores franceses do século XVIII mostraram-se muito interessados pelo exotismo oriental. Montesquieu, nas Cartas Persas, oferece-nos uma interpretação dos sentimentos, maneira de viver, costumes e trajar dos persas do seu tempo.

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A. Rodrigues
Foi jornadeando por estes destinos que, certa vez, entre o frenesim, do exotismo dos bazares e do tropel do tempo, num antiquado alfarrabista na parte oriental da cidade, contornando uma grande rotunda decorada com vetustos quiosques de vendas de jornais, encontrei casualmente uma versão antiquíssima do livro persa Hezar Afsaneh (Mil Histórias).

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A. Rodrigues
Na capa, original, lauta em entrelaçados geométricos que adotavam o subtil aspeto estilizado de formas hexagonais estreladas e de gavinhas geométricas abertas, que se repetiam indefinidamente e se atraiam umas às outras, sem nunca realizarem uma combinação ajustada, surgia uma inscrição, em farsi, de um dito do profeta Maomé que eu pude traduzir para algo como “os meus olhos dormiam, mas o coração jamais dormirá”. Passando os olhos pelas suas quase carcomidas cinco centenas de páginas, deparei, a dado passo, com um interessante aforismo relacionado com uma figura “divina”, numa espécie de apólogo em cadeia à semelhança dos clássicos contos d'As Mil e Uma Noites.

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A. Rodrigues
Folheei, com viva curiosidade, esse folhento volume e, num capítulo marcado com traços a lápis de carvão, eram enaltecidos os valores de Mushkil Gusha, um género de santo, a quem eram atribuídas propriedades espirituais incontestáveis. A história em si era muito longa, aliás nunca terminava. E tinha muitas versões. O nome Mushkil Gusha é uma designação persa para “o Dissipador de Todas as Dificuldades”. De grande parte dos iranianos com quem falei, obtive diferentes respostas. Alguns diziam-me que provavelmente seria 'Ali, o genro do profeta Muhammad. Uma iraniana a quem coloquei essa dúvida, respondeu-me objetivamente: “É Deus, não é?!”.
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A. Rodrigues
Outros dizem que Mushkil Gusha é o profeta Khezr “o Verde”, santo das confrarias dervixes, o patrono dos sufis, o “Mestre dos Mestres”, o “Murshid” dos santos, o ressuscitador das almas, o misterioso “Cavaleiro Verde” que tendo atingido a fonte da “Verdade” e bebido da “Água da Imortalidade” não conhece a velhice nem a morte.

O Alcorão mencioná-lo-á, sem citar o nome, como “um dos Nossos servos (...) um servidor agraciado com a Nossa misericórdia e iluminado com a Nossa ciência” (surata Al-kahf, A Caverna,18:65). A figura mais próxima a ele, encontrada na literatura, é Melquisedeque, que aparece no Génesis, XIV: 18-20, como o rei de Salém, sumo-sacerdote que abençoa Abraão, e é alegorizado por São Paulo na Epístola aos Hebreus, V: 6, 10 e VII: 1, 10: “(...) ele era sem pai, não teve principio dos dias, nem fim da existência (...)”. Quer isso dizer que apareceu misteriosamente e parece ter vivido todo o tempo, embora em Herat haja uma tumba que dizem pertencer-lhe. De acordo com a tradição, habitualmente ele não é visível, mas pode aparecer sob a forma de um homem idoso, porém de grande vitalidade, com uma longa barba branca, vestido de verde, quando socorro e guia são desesperadamente necessitados.

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A. Rodrigues
Ainda hoje, no Irão, e particularmente entre as mulheres, persiste a tradição de evocar as aventuras de Mushkil Gusha. A lenda é contada todas as semanas, às sextas-feiras, dia santo muçulmano. Para além disso, têm o cuidado de distribuir pelos pobres um prato especial de comida. Esse prato, que não é mais do que uma mistura de ervilhas assadas, passas, tâmaras secas, figos secos, amendoins e pevides, toma a designação de “aajeel” ou “nokhod kishmish”. É por causa de Mushkil Gusha, “protetor e guia dos mortais”, que as histórias sobre si narradas são lembradas por alguém, em algum lugar do mundo, dia e noite, onde quer que exista gente que precise de ajuda...

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  1. Alberto Lacet24/2/24 20:51

    Como é bom contar com um orientalista por aqui. Principalmente num momento em que o império hegemônico sonha (delira) em desconstruir o berço da civilização. A pátria de Ciro e da tolerância cultural e religiosa.

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