Eles habitam o andar de baixo, enquanto eu, encontro meu refúgio aqui em cima, nesse lugar onde, às vezes, me pego sussurrando baixinho alguma coisa, na solidão de minha pequena montanha de alvenaria. Na maior parte do tempo, a impressão que eles me fornecem é a de viverem presos a um silêncio aterrador, e eu raramente escuto suas vozes elevarem-se, o que acontece apenas quando alguma querela irrompe de súbito entre eles, ou quando um invasor assoma por lá, vindo da rua. Verificam-se nesses momentos uma sucessão de rápidos alaridos, para os quais já percebi que as motivações mais frequentes são as constantes violações do espaço que, talvez um tanto vagamente, tenham sido já delimitadas entre eles.
Tenho a dizer que montanhas são um refúgio seguro para quem é dado a observar a vida de cima, sem ser observado. Já os que habitam a geografia de baixo sabem bem o quanto precisam estar atentos a predadores, e o quanto precisam edificar uma habitação fechada à passagem de ventos, às enxurradas ou penetração de raios solares, e mesmo à luz que brota dos 4 pontos cardeais, a depender do período anual. Mas esses que moram aí, abaixo de mim, pra sua sorte não precisarão de tantos cuidados. Eles encontraram tudo resolvido antes de darem as caras por aqui. Vindos, Deus sabe de onde.
Uma escada helicoidal feita há 50 anos, e recentemente mandada revestir por cerâmica imitativa de madeira, nos separa – e também nos une. Não que isso signifique grande coisa para minhas necessidades de satisfação pessoal, de muitos anos oscilante entre momentos de isolamento completo e um, apesar de eventual – compulsivo compartilhamento de afetos.
Com passos silentes me dirijo à cozinha, e, nem bem comece a repetir gestos habituais como pegar o saco de leite em pó na geladeira, que emitirá estalidos típicos de um plástico grosso se dobrando, não demora para que surjam à minha frente. Silenciosos, chegarão me inquirindo com olhos invariavelmente atentos e impassíveis, limpos do menor lampejo de comoção, consternação ou constrangimento. No começo, vacilei um pouco e achei que essa recorrência presencial na cozinha não passasse de coincidência, apesar de, há muitos anos ter deliberadamente deixado de acreditar que coincidências sejam uma adjetivação confiável para fenômenos que, com certa continuidade se reproduzem na terra.
Apesar disso, demorou um pouco para que chegasse à conclusão de que eles não tinham como saber que eu havia deixado o gabinete de estudos e estava agora na cozinha, e que só podia haver um tipo de explicação para a infalibilidade daquelas presenças ali, poucos instantes depois de minha chegada: Comecei a pensar num tipo de percepção extra-sensorial, embora isso não fizesse o menor sentido, haja visto a equipagem de detecção que eles trazem colada ao corpo – e que é perfeitamente identificável a olho nu. O fato de possuírem olhos dotados de luz própria os dispensa de nossas ridículas lanternas de mão, velas e isqueiros usados para vencer a cegueira na escuridão.
Uma instigante curiosidade me fazia às vezes descer do meu serrote para a planície, obedecendo a uma compulsão que me dizia para investigar o que estava ocorrendo, a cada vez que me apercebia do silêncio reinante lá por baixo, e que se prodigalizava para além do esperado. Desses vizinhos eu já tinha conhecimento do processo de imigração e convívio entre eles e as gentes ocidentais, das quais teriam sido inicialmente acolhidos pela população pobre do medievo final, habitante dos entornos de castelos como de cercanias das primeiras aglomerações da burguesia em volta das cidades, e que, a troco do abrigo concedido, ganhavam uma segura proteção contra insetos e roedores que infestavam suas vielas medievais intumescidas de sujeira, e que, alguns séculos depois de vencida parte dos preconceitos e crenças absurdas que rondavam a identidade desses personagens, fruto dos manejos cínicos da igreja católica, que lhes atribuíam ligações fortíssimas com a “bruxaria alquímica”, eles começariam a ser aceitos pela elite social da época, convencida de que os antigos e sinistros atributos do passado tinham perdido a validade na época das grandes transformações por que passavam após o bloqueio de Constantinopla. Tempos depois, o iluminismo aprofundaria a diferença de visão entre o brutal papismo católico que rompera com a ortodoxia turca/russa e as modernas aceitações desses pequenos e misteriosos felinos, depois da fratura desse mesmo catolicismo europeu com a ascensão política dos países germânicos e o surgimento do protestantismo no século XV, provocando reviravolta conceitual naquela parte do mundo e fazendo com que intelectuais e artistas quebrassem as últimas barreiras dos preconceitos esdrúxulos e passassem a desejá-los para convívio.
Ao fazer minha verificação, no entanto, acabava descobrindo que na maior parte das vezes em que descera, havia de encontrá-los calmos e contemplativos em seus cantos. Não pareciam fazer muita questão de minha presença, de modo que eu me sentava no grande terraço da entrada onde eles faziam ponto e passava a observá-los em silêncio. Impossível não ver que a impassibilidade deles era bastante relativa, e que a aparente indiferença que pareciam dispensar ao mundo em volta deles não passava de um engodo. Suas orelhas moviam-se em concha e, quase imperceptivelmente, varriam de forma contínua os 4 pontos cardeais enquanto o silêncio reinava entre nós.