Texto originalmente publicado na revista comemotativa Rádio Tabajara 50 Anos, publicada pelo Governo do Estado da Paraíba, em 1987.
O historiador José Octávio me pede algumas reminiscências sobre a Rádio Tabajara da Paraíba, que, este ano, está completando seu cinquentenário, e eu não vejo como esconder esse passado que mora com muita nitidez na minha memória.
É bom reviver as boas lembranças. A Rádio Tabajara foi uma delas. Que mundo mágico aquele que eu ouvia, maravilhado, através dos primeiros receptores que apareceram aqui na cidade. Possuir um rádio constituiu o sonho de toda gente, de toda família. Era o tempo em que a voz bonita de César Ladeira, o maior locutor do Brasil, encantava os ouvintes, sobretudo quando lia as crônicas de Genolino ou Gilson Amado.
Assim como hoje quase todo mundo vive ao pé do televisor, o mesmo acontecia, nos idos das décadas de trinta e quarenta, em relação ao rádio. E quem tivesse uma boa voz, candidatava-se logo ao microfone para ser locutor ou cantor. E a emissora tabajarina era um espaço que se abria às vocações artísticas.
Ser cantor ou locutor da Rádio Tabajara constituía status, assim como escrever no Jornal A União. Jornalistas e radialistas disputavam popularidade. Eram apontados nas ruas. Gozavam de prestígio. Nesse tempo quem liderava na crônica era o teatrólogo e escritor Silvino Lopes, autor da peça de sucesso Ladra, que foi encenada no Teatro Santa Rosa, e aplaudida de pé. O drama teve um desfecho trágico como o suicídio do personagem “Grilo”, que tombava no palco ao som de “Serenata de Amor”, de Schubert, interpretada pelo violino do maestro Olegário de Luna Freire.
Pois bem, o escritor Silvino Lopes, nesse tempo redator-chefe d’ A União, era um entusiasta da emissora oficial. Tanto escrevia crônicas como orientava o rádio-teatro, dirigido pelo Cilaio.
Recordo o fato apenas para mostrar a estreita ligação que unia a Rádio Tabajara à A União. Quando estourou a Segunda Grande Guerra Mundial, houve necessidade de um comentarista internacional que estivesse em dia com os acontecimentos. É então quando surge Abelardo Jurema para o posto.
Mas eu disse que ser locutor dava status. E assim muitos nomes de prestígio social ocuparam o microfone da Rádio Tabajara. Lembro-me do Fernando Milanez, de Humberto Lucena, de Carmelo Santos Coelho, todos portadores de boa voz. Dava gosto ouvi-los fazendo propaganda da “Água Rabelo” e de outros produtos paraibanos.
O importante, porém, era ser cantor. Todo mundo queria imitar Vicente Celestino, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Sílvio Caldas, os astros que dominavam o cast radiofônico brasileiro, graças à Rádio Mayrink Veiga, que, na época monopolizava as atenções dos ouvintes, fazendo lembrar a TV Globo de hoje em relação aos telespectadores. As mulheres, por outro lado, sonhavam em ser uma Araci de Almeida ou uma Carmem Miranda.
Vicente Celestino ▪ 1894—1968
Aracy de Almeida ▪ 1914—1988
E assim apareceram nossos primeiros cantores: Jota Monteiro, Orlando Vasconcelos, Jaci Cavalcanti, Nelie de Almeida e outros, cujos nomes me fogem à memória. Aquele que desejasse integrar o “cast” de cantores era só se inscrever nos chamados programas de calouros. O candidato, todavia, corria o risco de ser desclassificado publicamente ao som de um humilhante gongo. Nesse tempo minha voz até que não era má. Treinava-a todo dia no banheiro, ao som do chuvisco, e os familiares foram unânimes em aconselhar: "Vá cantar na Rádio”.
E não é que fui na conversa? Meu cantor-modelo era Orlando Silva e a música de minha predileção intitulava-se Balalaika. Ah, como eu procurava imitar Orlando! Como caprichava nos graves. Não faltou quem observasse: “Você é o Orlando Silva paraibano”.
E um dia, eis-me na fila dos candidatos a cantor da Rádio Tabajara. Não me lembro quem dirigia o programa. Só sei que botei a roupa de linho branco e me submeti ao teste. As pernas tremiam, as mãos gelavam, o coração batia e uma sensação de ansiedade tomava conta de mim.
Três eram os candidatos. Meu medo era o gongo, que ficava atrás do candidato. Lá em casa, eu sabia que todos estavam ao pé do rádio, e isto me inquietava ainda mais. Se eu não passasse no teste? A garganta seca aumentava a minha ânsia. Até que enfim meu nome foi anunciado. O homem do violão, que ia me acompanhar, afinava o instrumento. Pediu-me o tom. Eu dei.
Aí começou o martírio. A voz saiu meio apagada, e em certos trechos da música, chegou a desafinar, sobretudo nos agudos. A todo momento esperava a gongada, que, felizmente não veio. Decerto, os examinadores tiveram pena daquele adolescente todo uniformizado, mas cuja voz não convenceu. Resultado: entre os três candidatos, alcancei o terceiro lugar. Desci as escadas da emissora com as orelhas pegando fogo. E o sonho de ser cantor da Rádio Tabajara acabou-se para sempre... Continuei cantando “Balailaka”, mas apenas no banheiro, sem o risco do gongo, sem o acompanhamento de violão, sem auditório.
Foi o tempo em que se fundou aqui a Sociedade de Cultura Musical, dirigida pelo latinista Afonso Pereira. A instituição, que se propunha incentivar o gosto pela música erudita, além dos concertos que promovia, mantinha um programa na Rádio Tabajara denominado “Paisagem Sonora”. E coube-me organizá-lo, juntamente com o jornalista Hamilton Pequeno. Assim, todos os domingos, às 10 horas da manhã, o paraibano podia ouvir as fugas de Bach, os concertos de Mozart, as sinfonias de Beethoven e até mesmo trechos de ópera. E não faltavam cartas e telefonemas elogiando a sequência.
Entre os ouvintes estava o circunspecto e erudito escritor Flóscolo da Nóbrega, que chegou a solicitar uma música: a ópera Nabuco. Outro ouvinte do programa era o advogado e professor Paulo Maia, o homem que tem a maior discoteca de músicas clássicas da Paraíba, quiçá do Nordeste.
O candidato frustrado de “Balalaika” se realizou com o programa “Paisagem Sonora”, que contava ainda com a colaboração do musicólogo Domingos de Azevedo Ribeiro.
Como disse acima, a Rádio Tabajara mantinha boas relações com o jornal A União, que lhe fornecia os comentaristas, os cronistas e até teatrólogos, como foi o caso de Péricles Leal, que teve a ousadia de radiofonizar Romeu e Julieta, de Shakespeare.
Mas o impossível acontece. Pois não é que aquele rapazinho, aspirante a cantor, chegou, um dia, a diretor da emissora oficial?! Atendendo a um pedido do então Secretário Aluísio Régis, para ocupar o importante cargo, não me fiz de rogado. Aceitei o convite.
Nesse tempo eu já era noivo daquela que iria ser minha companheira por 31 anos. Como toda mulher que ama, a noiva que morava no Recife, nutria lá os seus ciúmes. Daí não ter gostado daquela nomeação do noivo para dirigir a emissora oficial. Receava que ele fosse vítima de uma tentação. Tantas cantoras! "Depois essas meninas de rádio são muito salientes" ⏤ pensava.
O certo é que assumi o importante posto. Foi quando surgiu um problema. Estava em excursão pelo Nordeste a bailarina mexicana Rayito de Sol, que cantava de biquíni. Já imaginaram o escândalo? O diretor comercial achou que era um bom negócio, uma grande atração, contratá-la para uma apresentação. Aí me lembrei da noiva. Qual seria a sua reação? Fiquei num dilema hamleteano: contratar ou não contratar, eis a questão. Venceu, porém, o interesse comercial!
Na noite da estréia, para surpresa minha, defrontei com a noiva que, sem avisar nada, veio me visitar dizendo-se morta de saudades. Assim, ao invés do espetáculo da bailarina famosa, o jovem diretor terminou sentado num banquinho de praça ao lado da noiva saudosa.
Ah, a Rádio Tabajara! Como esse universo radiofônico enfeitiçou a minha adolescência! Não me esqueço de seus seresteiros que, nas tranquilas e desertas noites da então pacata província, encantavam seus ouvintes com “A Hora da Saudade”.
De minha banca de redator d'A União, ouvia, como um lamento, a voz de Tânia Ferreira cantando: Ó Palidez, de Osório Paes, enquanto bem perto de mim, Silvino Lopes escrevia a crônica do dia seguinte.
Eis aí algumas reminiscências que me chegam meio desalinhavadas, mas que dão muitas saudades, não sei se do adolescente, da rádio ou da noivinha ciumenta...