Dizem que o ano começa depois da quarta-feira de cinzas. Acabou o mês interminável de janeiro. Passaram as festas do Ano Novo, as férias, e a festa do momo. Que venham as águas de março e o sabor de recomeço e renovação. O ano letivo também já começou, as ruas movimentadas com os carros e os alunos com suas mochilas. A cidade quase na normalidade, os turistas voltaram para as suas casas. O calor? Teima em continuar escaldante.
E foi nesse anticlímax de carnaval que fui assistir ao filme Vidas Passadas, EUA, 2023, direção da estreante Celine Song. Com duas indicações para o Oscar 2024, melhor filme e melhor roteiro original. Na cena inicial, temos três pessoas, dois asiáticos e um ocidental, a conversar. Num jogo de adivinhação, não sabemos quem são, nem qual a relação entre eles. Só ao final, num clima nostálgico e melancólico, deciframos o enigma do encontro. E des-encontro. Muito me sensibiliza esse tema. o imponderável, os desencontros da vida, o amor não vivido, mas que agora é tarde, das circunstâncias nossas que nos levam a outros lugares físicos e simbólicos.
“Nora e Hae Sung, dois amigos de infância profundamente conectados, se separam depois de uma mudança. Duas décadas depois, elas se reencontram na cidade de Nova York para uma semana fatídica enquanto confrontam noções de destino, amor e escolhas.”
Nora (seu novo nome canadense), tem pais artistas e ela por sua vez quer ser dramaturga e ganhar o Nobel, depois o Pulitzer ou qualquer outro prêmio mais ao alcance. Hae Sung é quem fica. E quem fica, tem lá as suas desvantagens. Vê o seu amor partir e para longe. Outra cultura. Outra vida.
Anos depois, eles se reencontram pela Internet, esse mundo possível de se achar tudo. Mas nem tudo. Ficam eufóricos com a tela ao vivo, mas logo compreendem que o mundo é maior. Bem maior que aquela escadaria por onde Norma subia rumo à sua casa, e a ladeira por onde Hae descia para a sua. Depois de anos, Hae Sung. Visita Nora em NYC, onde ela é bolsista num instituto importante, mas aí a vida já deu suas voltas. O filme é sobre isso. As voltas da vida, e o que nos tornamos? O sentimento que fica intacto, mas que, a logística do amor não é tão simples. Eles têm uma semana para conversar, testar os sentimentos, ficar cara a cara um com o outro e com o passado. No meio deles, o ditado coreano, “in-yun” – que significa providência ou destino – conceito-base para a história do filme.
Aí é que entra a nossa tristeza como espectador. Assistir à ironia da vida. Hae quer aprender mandarim na China, Norma, quer ser escritora, morar na Big Apple e aproveitar tudo o que aprendeu no mundo ocidental. Ele, filho único, tem que cuidar dos pais, trabalhar duro, já prestou o serviço militar obrigatório, e quanto às camadas do destino ele não tem dúvidas. Tem o olhar perdido na paixão, mas também na impossibilidade. E o táxi o espera implacável para levá-lo ao aeroporto. Assim como em Casablanca. Aquele instante decisivo que define uma vida. Nós, abnegados nas cadeiras do cinema, entendemos as distâncias que nos são expostas. Um carrossel no Brooklin, aquela paisagem dos filmes de Woody Allen, aquela ponte cinematográfica que cruzei a pé em 2015, quando por ali andei, inclusive nesse mesmo carrossel, mas era fim de inverno, e estava gelado. Mas pude me transportar para aqueles cavalinhos com pisca-pisca coloridos, e chorar de amor. Amor não correspondido. Não realizável. Não vivido. Deixado lá na infância, e que por razões da vida, não se cruzam. Foram passadas, mas não cabem no presente, mesmo que pulse. Mesmo que na conversa num bar, os dois fiquem a se olhar e a se imaginarem enamorados. Quem está do outro lado nem imagina, faz conjecturas, nós também. Um pouco de distância e constrangimento. Um tanto de sem assunto. De procurar o olhar do outro lá nas ruelas de Seul na volta da escola. E ainda tem uma terceira pessoa, que se sente excluído, mas, é preciso deixar aqueles dois viverem esse re-encontro. Na vida, temos que checar esses momentos. Listar as camadas do ditado. E receber o destino – que bate à sua porta.
Enchi-me de lágrimas. Encontros e Des-encontros da vida. Caminhos divergentes. Motivos? Tantos e muitos. Racionalmente temos as listas. Mas o coração pulsa a cada vez que pensamos nesses amores perdidos pela vida.