Tocada pelos lampejos de luz dos recentes escritos dos professores Milton Marques e Helder Moura, lidos com admiração e especial interesse, venho a este ambiente.
No cerne do diálogo que se estabeleceu entre ambos estão os grafiteiros de Coimbra e sua anárquica vocação de independência e arrojo, seu sonho de uma vida acima das estrelas.
No cerne do diálogo que se estabeleceu entre ambos estão os grafiteiros de Coimbra e sua anárquica vocação de independência e arrojo, seu sonho de uma vida acima das estrelas.
Reconhecendo o viés anárquico que também me atravessa no que sou, senti-me, eu também, provocada a entrar nessa conversa. Minha entrada, entretanto, se dá com sabor de jogo e divertimento, como um gesto lúdico, eu diria, pois reconheço a minha pequenez em face desses dois gigantes da literatura, imortais reconhecidos, celebrados acadêmicos, escritores consagrados.
Sei bem que muitos dirão que o exame da Política em sua origem, possibilita que nos afastemos do anarquismo. Afinal, Aristóteles ensina que diferentemente da família e da aldeia que une os indivíduos por laços de consanguinidade ou interesse, a cidade os une com o fim de fazê-los viver “como convém que o homem viva”. E por ser um animal político - por possuir logos, a capacidade de falar de maneira sensata, e de refletir sobre seus atos - somente na cidade é que o homem pode realizar a capacidade inscrita em sua essência.
Confesso que não consigo me situar à margem dos fatos, das notícias do cotidiano, que reforçam a minha concepção negativa da política como saída para fazer um homem viver como lhe convêm.
O homem, penso, habita em poesia, como nos diz Holderlin, no título de um poema. Habitar implica as bases afetivas em que somos dispostos no seio das coisas. Nosso existir se perfaz sentindo, compreendendo, dizendo, numa dinâmica sempre renovada. Habitamos como intérpretes de nossa vida, poetando, articulando sentidos, mostrando o mundo, oferecendo elementos para o pensamento explicitar o seu significado. Habitar em poesia significa viver de forma autêntica e profunda, estabelecendo uma relação mais íntima e significativa com o mundo, consigo mesmo e com os outros. Significa estar em sintonia com a dimensão mais profunda e misteriosa da existência, aberto para a experiência estética, a contemplação da beleza, a conexão com as coisas, disposto a um deixar-ser elas mesmas. Habitar em poesia é estar atento às estruturas de poder que reprimem a liberdade e a criatividade, anulam as singularidades, sufocam a autonomia.
Nessa medida, somos todos poetas, como diz o pensador alemão da Floresta Negra. O problema é que vivemos um tempo mendicante, indigente, tempo de penúria, marcado pelo falatório fácil, pela curiosidade banal, pela fuga da afetividade, pela pretensa soberania da técnica, pela carga de informações constante de uma erudição vazia, pelo abandono das indagações mais profundas da existência humana. Nesse contexto, claro, o poeta é marginalizado. Tornamo-nos desterrados de nós mesmos. Mas aí é que está: nisso que pode parecer uma fantasia, o sonho de uma vida para além das estrelas, reside justamente a possibilidade de ser a expressão da compreensão da nascividade como nada. Por não se medir pela lógica e extrapolar o habitual, a linguagem do poeta, como a dos grafiteiros de Coimbra, fala a partir do coração das coisas, do íntimo, do profundo, pressentindo o mistério que elas encerram.
Essa força criadora dirige-se à instauração da verdade e como acontecer da verdade, faz-se arte, toda ela poesia em sua essência. Esse caráter poético da arte a faz transformadora. Transformadora não porque reflete a situação social ou por ser engajada, por fornecer indicações práticas para mudanças sociais; a arte é transformadora porque é instauradora e informadora desse trans, dessa ultrapassagem da realidade em direção a possibilidades, desse movimento inesgotável de busca, de procura; instauradora desse lugar que é a possibilidade de mil lugares, lugar como dinâmica inexaurível de busca de lugar. A arte vem para exprimir o que está nas entrelinhas; existe porque a realidade não basta.
Picasso nos diz que ela é uma mentira, que a arte é uma mentira que nos faz compreender a verdade.
Meio à margem, portanto, me pego neste instante falando de mentira... Da mentira da arte, essa linguagem estranha que elege o falso por desejo de verdade, desejo de abordar e de compreender o mundo, presente também nos grafites de Coimbra.
Penso agora na pintura dos sapatos camponeses do quadro de Van Gogh e na célebre análise dessa obra feita por Heidegger. Nenhuma descrição ou explicação, nenhum relatório sobre o processo de fabricação dos sapatos diria, como na pintura do holandês, o que é, na verdade, um par de sapatos camponeses.
Certamente, não. Somente pelo caminho indireto da obra de arte encontramos a verdade deste par de sapatos do homem do campo. Ouçamos o pensador:
“Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro está a umidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. (...) Por esse apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer mais uma vez a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte. O sapato pertence à terra, mas está abrigado no mundo da camponesa”.
Em sua vontade criadora, a arte revela o mundo da camponesa, dentro do qual os sapatos adquirem sentido e significado. No mundo da bailarina, no mundo do médico, no mundo da socialite, já são outros os sentidos do sapato. O que nos leva também a reconhecer que não existe uma verdade única para dizer de qualquer coisa... Elas só podem ser compreendidas no mundo em que se encontram inseridas, a partir portanto da vida, horizonte em que elas são iluminadas.
Viver como convém que um homem viva, então, não é coisa que decorra da política, penso, mas da decisão de cumprir esse nosso destino de intérpretes, de criadores de mundos, de fazer, cada um, sem medo, à maneira dos artistas, a experiência da verdade.
Falando de mentiras em busca da verdade, vejamos a ficção literária. Por mais estranha, por mais mentirosa, ela expressa alguma verdade. No conto AUTO-ESTRADA DO SUL, de 1960, Cortázar, escritor e intelectual argentino, referência no contexto da literatura fantástica latino-americana, narra um mega engarrafamento na saída de Paris, durante um feriadão, o que leva as pessoas a morarem nos carros. Na verdade esse conto é uma metáfora sobre o nosso modo de morar hoje, espremidos e submetidos a espaços cada vez menores e vagas de garagem cada vez maiores e em maior número, entre outras tralhas inventadas para conferir requinte a espaços artificialmente construídos e habitados: “gourmet”, “fitness”, “kids”.
Esse conto, quando foi escrito, foi considerado um conto surrealista, pela valorização do irracional, da imaginação, do desejo e do inconsciente, regiões escuras e indevassáveis, irredutível ao pensamento conceitual que procura aprisioná-las num sistema unitário, fechado e coerente. O caráter de verdade, denúncia e alerta desse conto revelou-se em agosto de 2010, quando na China, um engarrafamento de 100 quilômetros, numa rodovia próxima a Pequim, leva as pessoas a ficarem presas e a morar dentro dos carros. A imprensa noticiou e mostrou pessoas dormindo embaixo dos seus caminhões, compra e venda de comida a preços inflacionados entre os afetados, histórias de gente aprisionada por mais de dez dias, a rotina do novo modo de viver para vencer o cansaço, o tédio, o temor da violência relacionada ao estresse provocado pela situação. O engarrafamento durou cerca de doze dias, até que máquinas rasgaram uma via alternativa tornando possível uma saída.
Agora, já que o bate-papo teve início com os grafiteiros de Coimbra, trago Banksy à conversa, grafiteiro também, pintor, ativista político e diretor de cinema inglês. Sua arte de rua satírica e subversiva é exposta em locais públicos como paredes e ruas. Em telas e murais faz suas críticas sociais, comportamentais e políticas, de forma agressiva e sarcástica, quase sempre provocando nos seus observadores uma sensação de concordância e identidade.
No grafite de Bansky, aparece Einstein segurando uma placa: AMOR É A RESPOSTA, expondo dessa forma a própria relatividade da ciência. Um outro grafite, do mesmo Bansky ordena: SIGA O SEU CORAÇÃO. O caminho do coração é uma metáfora que não se explica por categorias lógicas. Um caminho é somente um caminho, dentre muitos outros. É a lógica do coração que indica se um caminho deve ser perseguido ou abandonado. A decisão deve ser sempre isenta de medo e ambição. Medo e ambição não combinam com os caminhos do coração. Onde há medo, há parada, desistência, retrocesso e infidelidade. Onde há ambição há descaminho.
Sim, foi dito ainda que noites sem dormir geram grandes ideias ou grandes monstros... penso que grandes idéias são quase sempre monstruosas. Desafiam o status-quo, questionam normas estabelecidas, desvelam crenças arraigadas, expõe o mofo de pensamentos, ameaçam os que têm interesse em manter o poder ou a ordem, gera resistência e medo nos que se sentem confortáveis instalados na mediania.
Vale lembrar, por fim, que o poético é um caminho que não leva a lugar nenhum; existir, habitar em poesia, é risco por excelência. Cumprimento de coragem. Talvez por isso a arte, a literatura, a música, o mito, sejam até hoje olhados com reservas...
N.E.: Os textos citados no início, de autoria de Milton Marques Júnior e Helder Moura podem ser acessados clicando aqui nos nomes dos autores.