Meu caro Milton, para não ir muito além das estrelas, conforme sua releitura do anarquismo, em sua última e bela crônica “ Uma história...

Duas histórias em um só ato

anarquismo helder moura coimbra pixacao
Meu caro Milton, para não ir muito além das estrelas, conforme sua releitura do anarquismo, em sua última e bela crônica “Uma história em dois atos” (Ambiente Carlos Romero), devo recordar, inicialmente, uma frase de Leon Tolstoi. Ele que se dizia um anarquista cristão.

anarquismo helder moura coimbra pixacao
León Tolstói CC0
Está em seu texto “Insubmissão”, esta a propósito uma palavra que já diz muito da essência do anarquismo:

“... A atuação do governo com seus métodos de castigo, antiquados e desapiedados, suas galés, prisões, forcas e guilhotinas, muito abaixo do nível geral de moralidade, tende bem mais a rebaixar o padrão moral do que elevá-lo, e mais aumenta do que diminui o número de criminosos.”

Há exemplos contemporâneos por aí, concorda?

Vou me valer, novamente, de Tolstoi, em seu livro “O que é arte?”, para relembrar seu ensinamento:

“Para definir arte com precisão, devemos antes de tudo parar de olhar para ela como veículo de prazer e considerá-la como uma das condições da vida humana. Ao considerá-la dessa forma, não podemos deixar de ver que a arte é um meio de comunhão entre as pessoas.”
anarquismo helder moura coimbra pixacao
León Tolstói CC0
Os grafites que você, mestre Milton, tão bem soube colher nas ruas de Coimbra têm essa espécie de comunhão entre as pessoas, e nisso está a genialidade do seu texto, muito mais do que a expressão do anarquismo que permeia as manifestações daqueles que emergem de seus próprios escombros para expor suas opiniões em forma de versos, pejados dessa anarquia que só a arte propicia.

Você concluiu sua bela crônica, nesta ágora do Ambiente Carlos Romero, sugerindo, com certo messianismo socrático, que, para seu próprio bem, o sujeito (leitor, sonhador, pensador) deve seguir sempre com os “pés no chão e olhos a observar o mundo, diferente do grafiteiro sonhador, que apregoa uma vida acima das estrelas, acreditando que o Anarquismo, meu caro Hélder Moura, poderá lhe garantir isso: Live above the stars”. Ou seja, repetindo, viver além das estrelas.

anarquismo helder moura coimbra pixacao
@carlosromero.com.br
Platão também tinha certa resistência aos poetas, por estarem sempre com os olhos nas estrelas. Não seria bom para a República ter poetas vivendo de fantasia e, de alguma forma, corrompendo a juventude. Mas, o próprio Platão também foi se valer de poetas como Homero, e toda a sua anárquica obra da Odisseia à Ilíada, inclusive apropriando muito de suas veias poéticas, para compor o corolário de sua própria obra. Pelo menos em minha humilíssima opinião de leigo. Entre um anarquismo e outro, estavam as estrelas.

anarquismo helder moura coimbra pixacao
Homero
Em seus diálogos, Platão vai admitir, com certa relutância, que os jovens gregos aprendiam as letras pelos textos de Homero, e que, sob este prisma, o poeta poderia literalmente ser considerado um dos mestres da Grécia. Apesar de entender como incompatíveis a poesia e a filosofia.Talvez porque, tanto para Homero, quanto para boa parte do pensamento grego, a loucura, tão comum aos poetas, era vista como externa ao sujeito, imposta pelos deuses.

Porém, descendo mais ao rés dos mortais, eis que me ocorrem uns tais versos do anarquista Rimbaud (A eternidade):

“Alma sentinela, Ensina-me o jogo Da noite que gela E do dia em fogo. Das lides humanas, Das palmas e vaias, Já te desenganas E no ar te espraias.”
anarquismo helder moura coimbra pixacao
Arthur Rimbaud CC0
Nada mais anarquista. Nada mais poético. Nada mais devastador, em sua sua inteireza e martírio, essências da vida do poeta.

Então, se “Chaque catastrophe est aussi une opportunité”, ou, reduzindo um tanto o sentido dos ditos grafiteiros, se cada sismo gera uma oportunidade, eis que, através de sua provocação, surgiu essa oportunidade, talvez mais uma audácia, de defender, não com a mesma competência, mas com certa afetividade (admito) e cargas de nostalgia a presunção de que, se não podemos ter um anarquismo além das estrelas, tenhamos pelo menos o testemunho de Jorge Luis Borges, um assumido anarquista moderado, quando professa:

“Sou anarquista. Sempre acreditei fervorosamente na anarquia. E nisso sigo as ideias de meu pai. Ou seja, sou contra os governos — especialmente as ditaduras — e contra os Estados.”
anarquismo helder moura coimbra pixacao
Jorge Luís Borges @spescoladeteatro
Ele, Borges, com os olhos nas estrelas, como bem sabemos. E, bem. Talvez para muitas pessoas Borges não seja considerado uma boa companhia. Para mim, sim. Assumo, humildemente.

Por fim, e para não me alongar em tão anárquica epístola, construída em noite de insônia, cito o seu grafite coimbrão, encontrado nas ruas da Conímbriga, perdão, Coimbra: “As noites sem dormir geram grandes ideias ou grandes monstros.” Você decide.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também