Geralmente em janeiro é época de chuvas pelo Sudeste e com as mudanças climáticas só o que se vê é enchente, rios transbordando, miséri...

Comprar cadeiras

enchente sudeste janeiro desigualdade social
Geralmente em janeiro é época de chuvas pelo Sudeste e com as mudanças climáticas só o que se vê é enchente, rios transbordando, miséria e tragédias. Anunciadas todas. A natureza é implacável, mas os governos incompetentes não se previnem, não tomam conta da população, não fazem o mínimo do dever de casa. E fico muito triste ao ver na TV as mortes, os carros boiando, as casas destruídas, as pessoas sem casa e perdendo tudo. Outra vez.

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Lilia Schwarcz UFMG
Tomei conhecimento do conceito mencionado recentemente pela ministra Anielle Franco, de “Racismo Ambiental”, conceito esse criado nos EUA ainda nos anos 80 e que a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz (quem admiro e me dá norte sobre a política brasileira), explica como um conceito que:

“diz respeito a desigualdades históricas, culturais e sociais que se inscrevem e atravessam catástrofes que parecem apenas acidentes ou geográficas ou até biológicas, mas que dizem respeito a iniquidades por demais humanas e políticas”.

Sempre que vejo essas tragédias sinto uma agonia. Tento sentir o abandono e desamparo e desespero das pessoas. Brumadinho, Mariana, lama feito tsunami, e o tal negócio de se salvar com a roupa do couro. Penso no meu conforto. Nas minhas coisas. Nos meus afetos subjetivos e guardados nas gavetas. Roupas preferidas. Lençolzinho limpo. Meu cotidiano. E como seria ficar na rua ao relento. Sem ajuda e sem rumo. Estremeço. E fico indignada com as mortes dos jovens, crianças, mulheres grávidas, idosos....

Dona Norma (enchente, RJ 2024)
Uma coisa me chamou à atenção. Uma mulher na sua cozinha, com água pela cintura, um fogão que só as bocas apareciam, e ela fazendo café, sabe-se Deus como. A foto viralizou e a filósofa Marcia Tiburi compartilhou com um pequeno texto. D. Norma, 70 anos, Zona Norte do Rio. Uma filha cochilou no parapeito da janela e D. Norma está dormindo no sofá encharcado.

Outra coisa que nos faz refletir: outra sobrevivente das cheias falou que há anos só compra cadeiras, pois de tanta enchente e de tanto perder as coisas, não se digna mais a comprar um sofá que seja, para vê-lo boiando pelos esgotos. Vive num espaço de entre lugar – mas sem lugar, e para isso, só compra cadeiras, pois são fáceis de salvá-las. O único utensílio que vale a pena investir. Do resto? O rio se encarrega. Ou encharca. Encharcados vivem todos. Como a D. Norma que, passa um café coado no meio da água. Como disse Marcia:

“Ela (D. Norma) está acima da desgraça que se abate sobre ela. Ela aprendeu a ser digna e forte para sobreviver… D. Norma mantém a dignidade diante da indignidade dos homens da política. Dona Norma não merece isso. Ninguém merece esse sistema racista, capitalista e patriarcal que produz a catástrofe ecológica e urbana. Sinto muito, Dona Norma.”

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Dona Norma Arquivo pessoal
Eu também sinto, Dona Norma, e não encontro uma palavra sequer para lhe confortar. Nem mesmo uma cadeira para lhe oferecer. E eu, do alto do meu conforto, comprei cadeiras novas para a mesa. Uma azul e outra amarela. Dos usados dos amigos da casa bonita. Direto da sala de jantar. Uma vez me enamorei por essas cadeiras na Tok Stok, mas custavam caro e eu não estava vivendo uma enchente. Deixei descansar o desejo. Quando entro na cozinha dos dois amigos, lá estavam as minhas cadeiras. Fiquei surpresa e logo manifestei a minha cobiça.

Passou um tempo e fui oferecida às cadeiras. Acho que botei olho gordo. E fechamos negócio. Brechó. Bazar. Tudo cabe no espaço do desejo. E estou eu aqui com cadeiras coloridas em tons pastéis, a pensar naquela senhora que só compra cadeiras para não perder a casa toda. Senti-me egoísta, perdulária, tudo tudo. E com vontade de oferecer as minhas cadeiras. Mas serventia mesmo, teria uma sopa quente, uma cama quente, e um banho quente, no meio daquela imundice em que ficam os lugares pós enchente. E nos meus pensamentos que são pouco úteis, me perdi em lama, em sufoco e em impotência.

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Arquivo pessoal (👉🏽 link da fonte)
Mas, botei gosto nas minhas cadeiras e fiquei a pensar na utilidade das coisas e de como tudo é relativo. Agora mesmo, nesse calor escaldante de que vale uma cadeira colorida? Bom mesmo é um ar condicionado geladinho, um sorvete de laranja, ou um banho de mar, como o que tomei ontem, com água verde esmeralda e translúcida.

Nós aqui, embaixo do Equador, temos a seca e fome, e um calor escaldante, mas no litoral, temos a brisa, e nada de enchentes. Nada de tornados. De El Niños, frios congelantes do midwest americano. Assisti ao filme A Sociedade da Neve (Direção Juan Antonio Bayona, Espanha 2023), sobre um voo que colide com uma geleira nos Andes. Apenas 16 dos seus 45 passageiros sobreviveram ao acidente. Num ambiente hostil, os sobreviventes têm que ultrapassar limites inimagináveis em busca da vida. O filme é muito bom, e mostra os dilemas de quando se está entre a vida e a morte. O forte, o frágil, o rígido, o valente, o destemido, o medroso, o que sucumbe rápido, aquele que anima todos, o que cuida, o que se desespera, e no meio da branquidão inóspita e desafiadora, não é que eles se salvam? eu quase morro no conforto da minha cama. E pensei: sou das que jamais teriam coragem de sair pelos Andes em busca do socorro. Morreria gelada. Sem forças. Entregue.

E por entre a neve, enchentes, cadeiras, e climas extremados a gente termina janeiro. Assustados.


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