Lilia Schwarcz UFMG
Tomei conhecimento do conceito mencionado recentemente pela ministra Anielle Franco, de “Racismo Ambiental”, conceito esse criado nos EUA ainda nos anos 80 e que a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz (quem admiro e me dá norte sobre a política brasileira), explica como um conceito que:
“diz respeito a desigualdades históricas, culturais e sociais que se inscrevem e atravessam catástrofes que parecem apenas acidentes ou geográficas ou até biológicas, mas que dizem respeito a iniquidades por demais humanas e políticas”.
Sempre que vejo essas tragédias sinto uma agonia. Tento sentir o abandono e desamparo e desespero das pessoas. Brumadinho, Mariana, lama feito tsunami, e o tal negócio de se salvar com a roupa do couro. Penso no meu conforto. Nas minhas coisas. Nos meus afetos subjetivos e guardados nas gavetas. Roupas preferidas. Lençolzinho limpo. Meu cotidiano. E como seria ficar na rua ao relento. Sem ajuda e sem rumo. Estremeço. E fico indignada com as mortes dos jovens, crianças, mulheres grávidas, idosos....
Dona Norma (enchente, RJ 2024)
Uma coisa me chamou à atenção. Uma mulher na sua cozinha, com água pela cintura, um fogão que só as bocas apareciam, e ela fazendo café, sabe-se Deus como. A foto viralizou e a filósofa Marcia Tiburi compartilhou com um pequeno texto. D. Norma, 70 anos, Zona Norte do Rio. Uma filha cochilou no parapeito da janela e D. Norma está dormindo no sofá encharcado.
Outra coisa que nos faz refletir: outra sobrevivente das cheias falou que há anos só compra cadeiras, pois de tanta enchente e de tanto perder as coisas, não se digna mais a comprar um sofá que seja, para vê-lo boiando pelos esgotos. Vive num espaço de entre lugar – mas sem lugar, e para isso, só compra cadeiras, pois são fáceis de salvá-las. O único utensílio que vale a pena investir. Do resto? O rio se encarrega. Ou encharca. Encharcados vivem todos. Como a D. Norma que, passa um café coado no meio da água. Como disse Marcia:
“Ela (D. Norma) está acima da desgraça que se abate sobre ela. Ela aprendeu a ser digna e forte para sobreviver… D. Norma mantém a dignidade diante da indignidade dos homens da política. Dona Norma não merece isso. Ninguém merece esse sistema racista, capitalista e patriarcal que produz a catástrofe ecológica e urbana. Sinto muito, Dona Norma.”
Dona Norma Arquivo pessoal
Eu também sinto, Dona Norma, e não encontro uma palavra sequer para lhe confortar. Nem mesmo uma cadeira para lhe oferecer.
E eu, do alto do meu conforto, comprei cadeiras novas para a mesa. Uma azul e outra amarela. Dos usados dos amigos da casa bonita. Direto da sala de jantar. Uma vez me enamorei por essas cadeiras na Tok Stok, mas custavam caro e eu não estava vivendo uma enchente. Deixei descansar o desejo. Quando entro na cozinha dos dois amigos, lá estavam as minhas cadeiras. Fiquei surpresa e logo manifestei a minha cobiça.
Passou um tempo e fui oferecida às cadeiras. Acho que botei olho gordo. E fechamos negócio. Brechó. Bazar. Tudo cabe no espaço do desejo. E estou eu aqui com cadeiras coloridas em tons pastéis, a pensar naquela senhora que só compra cadeiras para não perder a casa toda. Senti-me egoísta, perdulária, tudo tudo. E com vontade de oferecer as minhas cadeiras. Mas serventia mesmo, teria uma sopa quente, uma cama quente, e um banho quente, no meio daquela imundice em que ficam os lugares pós enchente. E nos meus pensamentos que são pouco úteis, me perdi em lama, em sufoco e em impotência.
Mas, botei gosto nas minhas cadeiras e fiquei a pensar na utilidade das coisas e de como tudo é relativo. Agora mesmo, nesse calor escaldante de que vale uma cadeira colorida? Bom mesmo é um ar condicionado geladinho, um sorvete de laranja, ou um banho de mar, como o que tomei ontem, com água verde esmeralda e translúcida.
Nós aqui, embaixo do Equador, temos a seca e fome, e um calor escaldante, mas no litoral, temos a brisa, e nada de enchentes. Nada de tornados. De El Niños, frios congelantes do midwest americano. Assisti ao filme
A Sociedade da Neve (Direção Juan Antonio Bayona, Espanha 2023), sobre um voo que colide com uma geleira nos Andes. Apenas 16 dos seus 45 passageiros sobreviveram ao
acidente . Num ambiente hostil, os sobreviventes têm que ultrapassar limites inimagináveis em busca da vida. O filme é muito bom, e mostra os dilemas de quando se está entre a vida e a morte. O forte, o frágil, o rígido, o valente, o destemido, o medroso, o que sucumbe rápido, aquele que anima todos, o que cuida, o que se desespera, e no meio da branquidão inóspita e desafiadora, não é que eles se salvam? eu quase morro no conforto da minha cama. E pensei: sou das que jamais teriam coragem de sair pelos Andes em busca do socorro. Morreria gelada. Sem forças. Entregue.
E por entre a neve, enchentes, cadeiras, e climas extremados a gente termina janeiro. Assustados.
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