Coisas estranhas. Quando meu pai morreu, em 92, fui a seu enterro e, ao passar, na volta de Sorocaba, por São Paulo, onde pegaria o avião para João Pessoa, resolvi fazer uma visita ao MASP – Museu de Arte de São Paulo –, que fora tão marcante nos meus 13, 14 anos. Tudo normal, menos quando me vi ante o São Francisco - de El Greco - orando ante um crânio seco, pois – embora o quadro não esteja entre os de Domeniko Theotokópoulos que já me empolgaram (como o Espólio e o Enterro do Conde de Orgaz, dois dos que veria em Toledo , 1994) – senti, ante ele, (literalmente) um soco no estômago.
- Por que?! - perguntei-me, ali e nas várias vezes em que essa reação me voltou à memória, até que ela me trouxe, junto, a lembrança de certa manhã de domingo – quando eu era rapaz – em que meu pai chegara da missa, furioso porque eu estava ouvindo, no rádio Pilot da sala – “o som nas alturas” -, a Sinfonia 40 , de Mozart, diretamente dos Concertos Matinais Mercedes-Benz, do Teatro Municipal de São Paulo:
- Puta que la merda! – bradou - De lá da esquina eu já estava ouvindo esse escândalo. Abaixe isso, rapaz!
Desliguei o aparelho e fui para o quarto, fechando a porta, a fim de continuar a ouvir a transmissão no rádio – muito ruim – que havia sobre o criado-mudo entre minha cama e a de Wilma. Mas até as válvulas esquentarem, fiquei completando a Sinfonia na memória e a escutar a discussão do velho com minha mãe.
- Nato – ouvi-a dizer - ele trabalha e estuda a semana inteira, só tem os domingos para ouvir o que quer!
- Devia de sair pra namorar, como o irmão!
Antes que ele completasse a frase, dei um murro no aparelho, que se calou na hora. Recuei meu punho fechado dentre as válvulas e Seu Fortunato entrou. Viu o estrago, vociferei-lhe que o quebrara sim, mas que pagaria pelo conserto. E saí. Uns vinte minutos depois, ele me encontrou sentado sob um dos ciprestes, junto ao quintal do vizinho... e disse
- Lembra-te de que és pó e ao pó retornarás! – isso no latim que ele tanto ouvia dos padres: quia pulvis es et in pulverem reverteris. - São Francisco, para não se esquecer disso, dormia ao lado de um crânio!
Ah!
Fora essa fala que me levara àquele soco no estômago frente ao São Francisco ante o … crânio seco, do MASP, no dia seguinte ao do velório … de meu pai!
E esse momento tivera o dom de mudar o comportamento frio que tinha comigo, desde que eu me entendia de gente.