Algumas singularidades interlaçam a vida e a obra de Shakespeare e Cervantes, num mesmo tecido de genialidade. Apesar das biografias tão distintas, William e Miguel estabeleceram um marco importante para a constituição do pensamento ocidental, a partir de seus trabalhos. Um pela via da dramaturgia e outro, pelo romance. E impressiona como matizes tão diversos compuseram um mesmo corolário revolto de ideias e pensamentos capazes de influenciar tantos séculos depois.
William e Miguel eram, como vários biógrafos registram, autodidatas. Miguel não teve chances de chegar à Academia. William foi obrigado a interromper os estudos. Mas, essa, digamos, deficiência de formação acadêmica, não foi óbice para a constituição de obras únicas, com uma inspiração particular, especialmente num período de tantas turbulências. Num lado e noutro do Atlântico. O mundo experimentava então profundas mudanças, um elemento a mais e talvez decisivo na formação de suas obras. Também impressiona como tendo realidades tão distintas, William e Miguel tivessem uma convergência importante na fronteira que medeia a loucura e o sonho. Se o inglês foi o mestre na tessitura da luta pelo poder e os dramas de amor, sonho e loucura, o espanhol foi o mago da linguagem na fímbria estreita entre o sonho e a loucura.
O crítico americano Harold Bloom, uma das poucas unanimidades na área da crítica literária, não teve muitas dificuldades para convencer grande parte da inteligência ocidental de que Shakespeare representa a “invenção do humano”, especialmente a partir de personagens como Hamlet, uma das mais destacadas criações da literatura.
Da mesma forma, poucas contestações ocorreram quanto o professor de literatura William Eddinton apresentou a tese revolucionária de que Miguel de Cervantes Saavedra foi, na verdade, o inventor do romance. Para o americano, antes de Cervantes não havia a ficção tal como nós ocidentais conhecemos. Cervantes teria estabelecido, com Dom Quixote, as bases da subjetividade na tessitura do texto.
E a verdade é que William e Miguel são reverenciados como os pais do pensamento moderno, para a quase totalidade da crítica literária. Shakespeare antecipou em praticamente três séculos o conhecimento de forças ocultas do inconsciente, que só viriam formalmente a lume com Freud. Suas tramas espelham as tramas do inconsciente, a dinâmica dos afetos reprimidos, suas manifestações tão absurdamente humanas e suas consequências no destino das personagens.
Cervantes foi prospectar no mais abissal da alma humana a residência oficial do sonho, tanto quanto Freud descortinaria os segredos mais íntimos do humano, praticamente três séculos depois. Cervantes soube encontrar o veio que levou do sonho à loucura, colocando num patamar tão profundamente humano, que a partir de Dom Quixote se tornou impossível não imaginar que os homens são loucos porque sonham e sonham porque são loucos.
Outra das singularidades é a História oficial registrar 23 de abril como a data da morte dos dois. O que, de fato, não corresponde à verdade. Foi e não foi. A Inglaterra de 1616 ainda seguia o calendário juliano. Como se sabe, em 1582, o Papa Gregório XIII suprimiu os dias 5 a 14 de outubro para adequar os meses às estações do ano. Desta forma, o 23 de abril inglês correspondia ao 3 de maio do calendário gregoriano.
Shakespeare teria na realidade morrido em 3 de maio, fazendo ajuste para o calendário gregoriano. Ou seja, dez dias após a morte de Cervantes. Além do mais, é importante destacar que os biógrafos do espanhol também divergem em relação à data real de seu falecimento, se 23 ou 22 de abril. De qualquer forma, por alguma razão, ficou consagrada, ao longo do tempo, a data comum de 23 de abril.
William Shakespeare nasceu em 23 de abril de 1564, na cidade de Stratford-upon-Avon, mudou-se para Londres, possivelmente em 1585, mas somente anos depois começou a ganhar notoriedade com suas peças e poemas. A Inglaterra vivia então um período de grandes turbulências. Mas, na virada do século, o Rei James I incorporou à nobreza a companhia Globe Theatre de Shakespeare virou celebridade e se consagrou com peças como Hamlet, Rei Lear e Macbeth.
Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares, nas proximidades de Madri, em 29 de setembro de 1547, 17 anos antes de William.
Mas, diferente do inglês, que teve uma biografia, digamos, mais linear, Cervantes teve uma vida de peripécias e muito sofrimento. Era o período de ouro da Espanha, que possuía enorme potencial bélico e disputava com Portugal grande parte do novo mundo recém-descoberto.
Cervantes tentou a vida como soldado e essa ousadia custou caro, pois terminou ferido na mão esquerda, durante a Batalha de Lepanto, cicatriz que carregou pelo resto da vida. Depois, foi levado para Argel como prisioneiro de guerra, onde permaneceu cinco anos até ser resgatado pela mãe. Depois, trabalhou como funcionário do reino e acabou preso, sob a denúncia de malversação, mas livrou-se da acusação.
Também tentou a vida como dramaturgo, disputando plateias com nada menos do que Lope de Vega, ídolo dos espanhois nas representações teatrais nos famosos currais, que era onde se encenavam as peças da época, especialmente pequenas comédias. Miguel escreveu várias peças, conseguiu a encenação de algumas, mas não teve muita sorte, até publicar Dom Quixote.
Sabe-se que Cervantes tinha um grande senso de honra, e não negava sua imensa admiração pelos soldados e a vida guerreira deles. Tanto que se tornou um deles. E não demonstrava o mesmo com a atividade política, de que tanto dependeu ao retornar de Argel e se tornar funcionário público, encarregado de amealhar mantimentos para satisfazer o espírito guerreiro do Rei Felipe II.
O talento de Shakespeare é incontestável. Está no panteão dos gênios. Mas, é evidente que ele dependeu das graças da nobreza para consolidar seu trabalho. Era um período em que, ou se tinha o beneplácito real, ou não se estabelecia na praça. E William só atingiu os píncaros da glória, quando realmente foi ungido pelo Rei James.
Não há consenso se William e Miguel chegaram a se conhecer. Ou se um conheceu a obra do outro. Mas, há lendas envolvendo esses gigantes das letras. Há biógrafos que advogam um encontro em Valladolid, quando teriam se encontrado, durante a assinatura do tratado de paz entre Inglaterra e Espanha. E também teriam disputado uma mesma mulher. Mas, não há registros confiáveis desse suposto encontro. É mais provável que tenha ficado no mundo do sonho.
Histórias assim, inclusive, ganharam a imaginação das pessoas, a partir de uma obra que, aparentemente, seria uma parceria entre eles. Uma das peças atribuídas a Shakespeare e John Fletcher (que gostava de literatura espanhola), “A história de Cardênio”, tem como protagonista um personagem constante da rica galeria de personagens de Dom Quixote. Cardênio narra para Quixote a sua desventura amorosa após a traição de sua mulher com um nobre. Mas, Shakespeare não cita Quixote na peça.
O tema é controverso. Muitos estudiosos afirmam que Shakespeare chegou de fato a conhecer a obra de Cervantes, mas o espanhol não conhecia sua dramaturgia. A obra de Miguel se tornou imensamente popular. Logo após ter sido lançada na Espanha, ganhou várias traduções, inclusive em inglês, e ficou amplamente conhecida na Europa. A obra de Shakespeare, no entanto, só adquiriu notoriedade mundial a partir do século XIX. Assim, é improvável que Cervantes tenha conhecido seu trabalho.
Mas, William e Miguel, embora utilizem linguagem diversa, foram buscar inspiração em contos populares, fábulas e mitos de seu tempo. Várias peças de Shakespeare tiveram como tropo material de domínio público, que tornou imortal pela genialidade como tratou a substância do imaginário popular, conferindo uma característica singular de atemporalidade, porque utilizou valores universais como amarradura do texto.
Igualmente, é inegável a influência dos contos populares, fábulas e mitos na literatura de Cervantes. Afora as próprias personagens, é impossível não identificar na sua obra o tropo dessa ascendência em seus textos. Alguns dos causos narrados em Dom Quixote tinham essa matriz, novelas curtas, com forte elemento moral, mas fundadas em histórias de sua época. E Cervantes confere imortalidade a esse material difuso graças à sua genialidade.
Outra singularidade, dentre tantas a se destacar: Cervantes teve uma história com a vida militar, como se sabe, mas sua obra não tem a guerra como mote e linha espinhal. Shakespeare, que, em sua biografia, pouco se registra de contato com o militarismo, aparentemente teve mais preocupações com essa temática, muito presente em obras como Macbeth e Rei Lear, para citar apenas dois de seus trabalhos mais importantes.
Porém, de todas as singularidades, talvez a mais importante tenha sido a capacidade de lidarem com o sonho e a loucura. Shakespeare explora os imites da irracionalidade, para encontrar o racional porque humano. Seus personagens estão mergulhados no limbo do humano, onde estão a sede pelo poder, as paixões desenfreadas, a loucura que bordeja suas mais caras manifestações. Uma teatralidade entre o irracional e o racional, que, afinal, resume a aventura do homem.
Cervantes prospecta o sonho, ali no mesmo território onde nasce a loucura. Personagens como Dom Quixote e Sancho Pança lideram uma galeria de seres que são apenas e tão somente uma parte do que cada humano carrega consigo. Um sonho para realizar, ainda que aparentemente insano, e um contraponto de realidade, que, em muitos momentos, termina se confundido com a irrealidade, sobrepujado pela força do próprio sonho.
Porque o sonho talvez seja a maior motivação do humano. E sem o sonho não haveria Skakespeare e Cervantes. E sem Skakespeare e Cervantes não haveria o humano tal qual hoje conhecemos.