Acho que todos nós temos uma paisagem encoberta naquele recanto da mente onde também se escondem a saudade e o bem-querer. Quero crer em que isso ocorra, sem exceção, a todo e qualquer ser humano com o domínio pleno de suas lembranças, viva onde viver, tenha o idioma que tiver.
Suponho, mesmo, que guardamos a sete chaves coisas que no passado dividimos com a família e aqueles, ou aquelas, que venhamos a ter ao lado no transcurso da vida. Gosto de pensar, enfim, que mantemos no fundo da alma um armário para nossos melhores sentimentos e que isso ocorra a fim de que dali retiremos o remédio para tempos difíceis, em caso de precisão.
Semana passada, voltei a fotografar o Caminho da Samambaia, a estradinha que, há muito tempo, o capricho de alguém pôs numa moldura de coqueiros. Assim o fiz na companhia, agora, da mulher que os Céus por sorte a mim destinaram há 46 anos e, ainda, na do mais novo dos nossos três rebentos.
Pude sentir que mãe e filho não tinham ali mais do que uma bela cena rural, uma vereda encantadora e indispensável a uma cidadezinha com nítida vocação para o turismo, mas ainda necessitada, indesculpavelmente, das oportunidades de emprego e renda que disso adviriam.
Eu tinha muito mais. Tinha a lembrança daqueles que me geraram, tinha comigo os irmãos pequenos e de volta, também, a trilha que me permitiu os primeiros passos, com invenção de roteiros, rumo ao imponderável. Eu vagava por ali sem as preocupações da vida adulta, andava por andar. Mas foi à sombra daqueles coqueiros que meus olhos de 15 anos notaram a garota com quem, dias depois, eu dividiria um banco de praça.
À moça que levei ao altar peço que não se preocupe, pois a lembrança que então me ocorria vinha até mim, sem pedir licença, com a cabeça e os pés de menino. Vinha sem intenção além daquela destinada a me fazer recordar de quem fui e por onde caminhei.
Eis que, ali percorridos uns 300 metros, os atuais acompanhantes chamavam minha atenção para coqueiros que pendiam em decorrência da exposição das raízes, fenômeno provocado pelas águas de muitos invernos. Outros haviam perdido as copas e exibiam troncos mortos. Não fora feita qualquer substituição e nenhuma árvore nova surgia nos dois lados da estrada inscrita entre as mais atraentes paisagens do Agreste da Paraíba. Nada a rebrotar, infelizmente, naquela cena impressa na memória afetiva de sucessivas gerações.
Quanto tempo vive um coqueiro? Pode viver além dos 150 anos, responde-me o Instituto de Economia Agrícola, organismo do Governo de São Paulo, a quem recorri, via Google. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária acresce-me a informação de que tais árvores têm vida econômica de 60, ou 70 anos, tempo em que produz, cada uma, até 80 frutos anuais. Ou seja, podem dar em cada copa 5.600 cocos durante o período da fertilidade.
Não pesquisei o tema interessado no consumo comercial da água nem da polpa de coco, seja in natura, seja nas caixas ou garrafas da indústria. Assim o fiz para calcular o início daquelas duas linhas vegetais bem fincadas com o evidente propósito de embelezar a estradinha de barro. Não menos, de oferecer sombra aos que nela caminhariam, repito, por gerações sucessivas. Quem as cultivou há um século e meio – cálculo ao qual me conduziu a pesquisa – não o fez com sentido no lucro, mas com as razões do coração. Aquele homem, os anjos o tenham, foi um construtor de panoramas.
Os mesmos santos hão de julgar os promotores desse abandono. Incomoda-me o fato de que o povo não o tenha feito ao longo de muitas eleições. “Trata-se de propriedade privada, fora do alcance da gestão municipal”, ponderou o amigo de infância a quem reclamei do descaso. “As estradas, como as calçadas, são de domínio público”, a ele respondi.
Aos 15 anos de idade, deixei Pilar, a terra que quase me viu nascer, a fim de viver em João Pessoa. A malha asfáltica que recobre, atualmente, os 70 quilômetros de distância até onde moro me tem facilitado visitas mais frequentes a essas minhas origens. Em cada uma delas comento um ou outro desleixo, ofereço sugestões para o resgate de festas e tradições e enalteço as boas providências quando as identifico. Tenho feito isso, também, por escrito desde meus tempos de batente no jornalismo. E, penosamente, costumo falar a ouvidos surdos.
Ouvi do escritor e sociólogo Odilon Ribeiro Coutinho, homem de forte expressão no meio empresarial, na política e na literatura regionais: “Pilar compõe, na Paraíba, uma área de profunda evocação lírica e histórica”. Aludia ao universo do romancista José Lins do Rego (de quem foi amigo), aos engenhos de fogo morto, às capelas do período colonial existentes entre Cruz do Espírito Santo e Santa Rita e à cidadezinha que, em 1859, recebeu a visita do Imperador Pedro II, porquanto coração da zona canavieira quando o País tinha no açúcar um dos produtos de maior peso na pauta das exportações. Parte desse formidável acervo foi recuperado pelo Instituto do Patrimônio Histórico graças a seus esforços e seu prestígio.
Acho que Odilon morreu sem ver a restauração do Engenho Corredor (berço do mesmo José Lins) com o concurso do Iphaep presidido, então, pelo conterrâneo Damião Cavalcanti. Aplaudiria, certamente, o arrojo dos proprietários Alba e Joaquim Soares que, sem difusão nos calendários oficiais do turismo, hoje dispõem a levas ainda pequenas de visitantes um ambiente retratado em romances traduzidos, ao menos, em dez idiomas.
Insisto, agora, em que é possível salvar o Caminho da Samambaia. Comecemos pelos mais jovens para os quais o futuro reserva os postos de mando. As escolas bem poderiam deflagrar, ali, uma campanha de rearborização rural e urbana, porque as linhas de fícus que emolduram a rua principal já perdem espécimes não substituídos, devida e prontamente. Para isso, poderiam contar com a participação irrecusável do Ministério Público Estadual.
Enfim, é preciso que o Poder Público tenha, de fato, no turismo uma indispensável fonte de emprego e renda em benefício, também, dos núcleos mais pobres. Mas é necessário, sobretudo, que a sociedade não cruze os braços, faça sua parte. Isso inclui a luta pela preservação dos elementos naturais e daqueles outros que a identifiquem no terreno vasto e diversificado da história e da cultura. Isso, acentuemos, requer a repulsa aos maus gestores da coisa pública. Fica a recomendação.