Amanhã é o dia 29 de fevereiro de 2024, um ano bissexto. O intrigante é que herdamos dos romanos, o nome e a função do calendário, na...

Calendas de Março e dia bissexto

Amanhã é o dia 29 de fevereiro de 2024, um ano bissexto. O intrigante é que herdamos dos romanos, o nome e a função do calendário, na sua significação de quantidade de dias do ano e da sua divisão em doze meses, e, nesse calendário, não há o dia 29 de fevereiro, nem qualquer referência a ano bissexto. Expliquemos. Embora não tenhamos guardado a maneira romana de contar os dias, o mundo ocidental por ele colonizado, bem como o restante do mundo, aonde Roma não chegou, adotou o chamado Calendário Juliano, por uma questão prática ditada pelas atividades comerciais.

calendas gregas calendario juliano ano bissexto
Calendário Romano CC0
A palavra calendário tem sua origem no nome do primeiro dia de cada mês romano, chamado de Calendas (Kalendae), palavra só empregada no plural, cujo genitivo é Kalendarum, que se pode traduzir como “das Calendas”. Não é do genitivo, no entanto, que surge a palavra calendário, mas de um termo derivado, Kalendarium, para designar o registro de contas num determinado livro que levava aquele nome. Deduz-se, portanto, que o registro das contas de uma casa ou de uma pessoa iniciava-se no primeiro dia de cada mês. O livro, pois, que contava os dias do ano, passou a chamar-se Calendário, lugar onde se pode marcar as atividades relativas a cada mês.

Se originalmente o calendário tem o propósito de marcar os vários ciclos da natureza, devemos observar que, desde os seus primórdios, no século VIII a. C., não havia como dissociar esses acontecimentos da prática religiosa vigente. Era função do sacerdote ou pontífice estabelecer as práticas litúrgicas, a partir do primeiro dia da Lua nova. O sacerdote, então, dava início às atividades religiosas do mês, com um chamamento da população à Curia Calabra, um lugar coberto no Capitólio, cuja finalidade era marcar os dias fastos e os dias nefastos. É, portanto, do verbo calō, calāre, invocar, chamar, convocar, que se origina o termo Kalendae.

calendas gregas calendario juliano ano bissexto
Placa do Jubileu Cristão, ano 2000, Sé Velha de Coimbra Acervo do autor
Todo o cálculo dos dias se baseava nos três períodos de cada mês: as Kalendae, como já sabemos, o primeiro dia do mês; as Nonae (Nonas), que poderiam cair no quinto ou no sétimo dia, após as calendas, e aconteciam sempre nove dias antes dos Idus (Idos). Estes, a depender das Nonas, poderiam cair no dia 13 ou no dia 15 do mês. Como se vê, todo o cálculo estava relacionado às Calendas. E dizemos cálculo, porque o transcorrer do mês dependia de uma conta de subtrair, a partir das Calendas, e da relação entre os dois períodos – Nonas e Idos – com o mês subsequente. A título de curiosidade, é interessante observar a placa comemorativa do Jubileu Cristão, no ano 2000, afixada no claustro da Sé Velha de Coimbra, cuja data, 13 de dezembro de 2000, foi escrita em latim, Conimbrigae, idibus decembribus, anno bis millesimo.

Vejamos um exemplo, a partir de uma expressão muito conhecida: Idos de Março. No mês de março, as Nonas caíam no dia 7; os Idos, por conseguinte, aconteciam no dia 15, exatamente nove dias após o primeiro dia das Nonas,
calendas gregas calendario juliano ano bissexto
Assassinato de Júlio César W. Holmes Sullivan
contando-se o dia de partida, 7, e o dia de chegada, 15. Assim, podemos dizer que os Idos de Março ocorreram no dia 15 daquele mês, permitindo-nos determinar a data do assassinato de Júlio César, considerada, a partir de então, uma data fatídica ou nefasta. Sua morte foi prevista, segundo nos conta Suetônio, no Divo Júlio, por um harúspice cego, Espurina (Spurinna). César não acreditou na profecia e quando chegou o dia previsto, indo em direção ao Senado, encontrou-se novamente com Espurina, dizendo-lhe: “Os Idos de março chegaram e nada me aconteceu”. A resposta sibilina de Espurina foi: “Chegaram, mas não se foram.”

Como mais uma curiosidade, podemos dizer que os romanos também tinham o seu Dia de São Nunca. O termo Kalendae, uma exclusividade do calendário romano e dos que o utilizavam, era associado ao mundo grego, quando um romano não queria pagar uma dívida, mandando-a para as Calendas gregas (Kalendae Graecae)...

Terminus Hans Holbein
Cheguemos ao assunto intrigante do início deste texto. O dia 23 de fevereiro, que ocorreu sexta-feira passada, marcava as festas de encerramento do ano litúrgico romano, festividade chamada de Terminalia, em homenagem ao deus Terminus, estabelecedor dos limites. Quem conhece a Roma moderna sabe que a sua estação central se chama Termini, porque era dessa cidade que se marcavam todos os limites do mundo conhecido, dominado pelo império.

Na contagem do calendário romano, o dia 23 de fevereiro era o “sétimo dia antes das calendas de março”, contando-se retroativamente, como já vimos, o dia de partida, 23, e o dia de chegada, 1 de março. Dizia-se, então, ante diem septimum Kalendas Martias ou ante diem septimum Kalendas Martii. O dia 24, sábado passado, se estivéssemos em um ano comum e não em um ano excepcional, que herdamos do Calendário Juliano, seria simplesmente o “sexto dia antes das calendas de março” ou o ante diem sextum Kalendas Martias. No entanto, quando da reforma operada por Júlio César, em 46 a. C., com a ajuda do astrônomo Sosígenes, verificou-se a necessidade de se acrescentar 1 dia, a cada quatro anos, para se igualar o calendário ao andamento do Sol. O ano, de acordo com o cálculo de Sosígenes, tinha 365 dias e 6 horas. Tratava-se, pois, de um calendário solar e não mais lunar, como nos seus primórdios, apesar de se continuar a usar a terminologia de sua origem, para dividir os períodos de cada mês.

calendas gregas calendario juliano ano bissexto
Calendário Romano Bauglir
Com a adoção de mais um dia a cada quatro anos, o ano específico passou a contar com 366 dias, sendo chamado, posteriormente, de ano bissexto. Na realidade, o ano é excepcional, o dia é que é bissexto. A explicação está na contagem dupla do dia 24, por ocasião da excepcionalidade do ano. O dia 24 de fevereiro era, portanto, contado duas vezes, tanto para o sábado, quanto para o domingo passado. Se o dia 24, num ano comum era o ante diem sextum Kalendas Martias, num ano excepcional era o dia 24 de novo, ou seja, ante diem bis sextum Kalendas Martias, o “sexto dia novamente antes do dia primeiro de março”. Por sua vez, o dia 25, era o ante diem sextum Kalendas Martias, totalizando 29 dias, mas sem o dia 29 aparecer como uma data formal. Na prática, o calendário latino utilizava-se de um dia de 48 horas, a cada quatro anos, para o ajuste devido com o andamento do Sol.

calendas gregas calendario juliano ano bissexto
PN10
O período, entre o dia 24 de fevereiro e o último dia deste mês, hoje, 29 de fevereiro ou o dia anterior às Calendas de março (pridie Kalendas), no calendário romano, determinava uma pausa para o reinício das atividades do ano litúrgico, a partir do dia primeiro de março, dedicado à deusa Juno e, por extensão, às mulheres. Como o mês de fevereiro se consagrava a Juno Februa, responsável pelas purificações do ar, cuja festa, as Februa, ocorria no dia 15 do mês em curso, espero que todos tenham aproveito esse momento, para purificar o pensamento, buscando sem mágoas, sem ressentimentos ou ódio, a paz, que começa sempre em nós, na dura luta para expurgar, mais do que as nossas palavras, o nosso íntimo, refletindo as nossas atitudes.

Que se tenha ouvido o poeta Ovídio, nos Fastos (Livro II, versos 29-30 tradução nossa), o mais belo poema sobre o calendário:

Denique quodcumque est quo corpora nostra piantur, hoc apud intonsos nomen habebat auos. Enfim, qualquer coisa que exista pelo qual nossos corpos são purificados, tinha este nome (februa) entre nossos intonsos avós.


COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também