Atribui-se ao cozinheiro francês Nicolas Appert a conservação de alimentos em frascos de vidros lacrados com arame, rolha e cera, no ano santo de 1795. Ele assim o fez de olho no prêmio oferecido pelo governo da França a quem fosse capaz de fazer durar por mais tempo a ração militar nos campos de batalha. Sua proeza foi contada em livro chegado às mãos do comerciante inglês Peter Durand que, em 1810, patenteou o processo de conservação, desta vez, em latas de estanho. O diabo é que isso envolvia a aplicação nociva de chumbo.
Nicolas Appert (em gravura de É. Foucaud, 1841) e a placa da rua em Paris que homenageia o seu nome (mapa).
As guerras napoleônicas impulsionaram o invento que, inimizades à parte, chegava às mochilas das tropas inimigas quase no mesmo tempo. Poucas décadas depois, as empresas americanas entrariam na dança, perguntem à Campbell Soup, ou à HJ Heinz Company. O velho Louis Pasteur, tão conhecido nosso, contribuiria, involuntariamente, com a segurança dos enlatados.Hoje, para ficarmos no caso, russos e ucranianos, desgraçadamente, atiram uns nos outros depois de bem nutridos com arroz, carne, bacon, legumes, patês, molhos, massas, queijos, chocolates, bolos e sucos meticulosamente embalados. No transcurso do tempo, as latas originais foram substituídas por embalagens plásticas agora seladas a vácuo. E um kit desses ainda inclui fogareiro a álcool com plaquinhas de fácil montagem. Morrer, sim. Mal alimentado, nunca.
Quer matar a curiosidade? Quer saber como isso funciona? Então, vá ao YouTube. Se buscar “ração militar brasileira”, é claro que irá encontrar ali, também, uma bela feijoada.
Longe dos campos de batalha, sem fuzis nem licença para atirar nos outros, todos há muito sabemos da profusão de alimentos industrializados dispostos, fartamente, a quem os procure desde os supermercados grandes, médios e pequenos até as bodegas de beira de estrada.
Mas, em meados de 1990, o que me tirou do Escritório do Jornal do Commercio do Recife então instalado na Avenida Pedro II, em João Pessoa, foi a buchada de bode. Pus-me a caminho do Núcleo de Pesquisa e Processamento de Alimentos (Nuppa), da Universidade Federal da Paraíba, depois de informado de que ali desenvolviam-se esforços para enlatá-la.
Era projeto idealizado pelo empresário Rafael Bernardino de Sousa, criador da Capriovi S.A. Indústrias Alimentícias, tocado com o concurso, também, da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapep), organismo do Governo do Estado. Desse tudo certo, a pequena Cabaceiras, no coração do Cariri, poria um dos mais difundidos pratos da culinária nordestina nas prateleiras do Brasil, ao menos, nelas.
Parceria com o Nuppa e a Fapep já publicada no Diário Oficial do Estado, a Capriovi tratava do investimento inicial de R$ 1,3 milhão nessa empreitada. Naquele instante, esse dinheiro já possibilitava ao Nuppa a restauração de equipamentos tais como estufas, trituradores, injetores de salmoras e recipientes para cozimento em elevadas temperaturas.
“Vamos sugerir, além disso, cortes nobres para pernil, lombo e paletas em ovinos e caprinos e o experimento de temperos. Daqui, também sairão recomendações para a embalagem”, contava-me um animado José Carlos do Nascimento, o agrônomo que condizia aquelas pesquisas.
É preciso dizer que a ideia inicial não passava da industrialização de partes especiais de ovelhas e cabritos. A da buchada surgiu da constatação de que a seleção de cortes diferenciados de animais, fosse onde fosse, deixava sobras que não poderiam ficar sem aproveitamento.
Notadamente, neste caso em que vísceras, bucho e demais refugos compunham os ingredientes do prato de forte apelo cultural e, portanto, com ressonância até na área do turismo. “Decidimos, então, aproveitar tudo o que fosse possível do bode e da ovelha”, informava o pesquisador.
Natural de Cabaceiras, Rafael Bernardino, enquanto isso, não optava pela instalação desse negócio, ali, apenas por razões sentimentais. Buscava, sobretudo, a proximidade do quinto maior aglomerado caprino do País. Ressalte-se que o Nordeste sozinho possuía 90% do rebanho nacional, à conta da época. Sou capaz de apostar em que, de lá para cá, não houve grandes mudanças nesse percentual.
Destinado, ou não, aos cortes nobres e à produção de leite e queijo, o bode brasileiro, ao que me parece, sempre teve no Cariri, no Curimataú e no Sertão nordestinos a sua pátria. Bem falam disso os míseros 10% desses animais abrigados em outras áreas e outros climas. O fato é que eles nunca foram tão bem-vistos lá fora como o são aqui.
Com o perdão deste sujeito que agora fala sem ter posto uma vista sequer nos compêndios da caprinocultura, da estatística e da economia voltada para esse nicho de mercado, o bode, minha gente, de certo modo, é irmão do jumento. Ambos são, mesmo, um tanto discriminados.
A sorte madrasta a eles relegou a terra seca e o mato ralo, com sabidas exceções. No caso do bode, as dos apriscos feitos para o abrigo de raças importadas úteis à produção leiteira e seus derivados, sobretudo isso. De resto, esses dois filhos da má sina estão no anedotário universal e na crendice popular.
Quantas vezes o diabo não nos aparece com pés e chifres de bode? Carneiro, não. Isso é bicho de manjedoura. Outra questão: de que adianta ter o jumento servido de montaria para Jesus e Maria se todo mundo se abespinha quando tratado por asno, desde Cabaceiras até Nova York?
Nunca mais ouvi falar em buchada enlatada desde a entrevista para o jornal recifense. Não sei disso, hoje, nas prateleiras. Alguém sabe? Distração à parte (a crônica é licenciosa), eu me pergunto, seriamente, se a ideia da Capriovi não sucumbiu ao preconceito amplo e generalizado. A empresa não teria se saído de melhor modo com os esnobes nossos de cada dia se houvesse enlatado o “haggis”, parente escocês da buchada nordestina feito com fígado, pulmão, coração e vísceras de carneiro, tudo isso envolto no estômago desse animal? Tendo a supor que sim.