E quando passa a correnteza que transborda, uma consciência permanece na margem silenciosa da memória; Imagens e pensamentos precio...

A língua dos mortos

colagem reflexoes mortos
E quando passa a correnteza que transborda, uma consciência permanece na margem silenciosa da memória; Imagens e pensamentos preciosos que não podem e nem devem ser destruídos.
William Wordsworth

O que dizem os teus mortos? Os meus dizem coisas extraordinárias. Narram contos finos como bolhas de sabão, deliram ao rememorar grandiosos feitos, embolam-se em mesquinharias, elevam risos e curvam a cabeça diante das tragédias. Sussurram-me ao pé do ouvido que, no fim de tudo, restam apenas as histórias, que subvertem a morte e atravessam os milênios transmitindo o que agitou as dobras de um tempo antigo.

colagem reflexoes mortos
S. Brogan, CC0
No canto onze da Odisseia, Ulisses desce ao Hades, o mundo subterrâneo, para encontrar o espírito de Tirésias. Navega até o fim do oceano e ingressa no reino da temível Perséfone. Lá, põe sua espada sobre a vasilha de sangue dos animais sacrificados e, assim, controla os que falam e os que calam. Cada morto que caminha – pálido e desmemoriado — revive por fugazes instantes ao provar do líquido símbolo da vida.

Os gregos dos tempos homéricos acreditavam que todos os mortos iam para o Hades, independentemente de suas ações boas ou más. Por isso Ulisses encontra ali a própria mãe, os heróis da guerra de Troia, rainhas lendárias, amigos, inimigos e o tolo companheiro que acabara de morrer por causa de um descuido. Todos têm algo a dizer.

O que busca Ulisses no mundo dos mortos? Preparar-se para o futuro e ouvir as histórias do passado. Por breves instantes, enquanto suas vidas são narradas, vivem de novo. Repetidas pelos poetas, gravadas nos livros, suas experiências venceram os séculos e fizeram chegar até nós as lições que aprenderam.

colagem reflexoes mortos
S. Brogan, CC0
Sem descer ao Hades, falo diariamente com os meus mortos. Trago-os à vida quando lhes rememoro as vozes. Doces cantigas, lamentos e retalhos das trajetórias dos que já não estão aqui são como fotografias antigas das quais se sopra a poeira. Fazem ouvir novamente o som dos risos de mães, materializam mãos calosas de pais, canções murmuradas, livros lidos, soluços há muito silenciados e o sulco das lágrimas em faces hoje desaparecidas. Recolho os pedacinhos como quem reúne um quebra-cabeças divino.

Meus amados não estão nos túmulos enfeitados de grinaldas pálidas e flores que logo murcharão. Também não estão nas cinzas espalhadas pelo ar. Não se impressionam
colagem reflexoes mortos
S. Brogan, CC0
com a cera a escorrer das velas. Estão bem vivos nas histórias que repito aos meus filhos e ponho nos meus escritos. Elas devolvem a cor aos olhos mortos, aquecem os corpos e fazem bater novamente os corações.

Minha oração permanente é honrar-lhes a memória contando fragmentos das suas vidas, que de simples e banais têm apenas a aparência.

Dia haverá em que, já nos disse Fernando Pessoa, todos estaremos mortos e a natureza seguirá sem alterações, indiferente à nossa ausência. Não há garantia que as gerações futuras se lembrarão de algo. A não ser que esteja gravado na matéria imperecível da grande arte.

Mas, você há de perguntar, para que contar histórias? Certamente não para tornar alguém famoso. Fama – aprende-se com Aquiles no Hades – é tolice e de nada vale quando se está morto. O que se conta sobre os mortos serve para conectar os homens do passado aos do futuro.

Histórias dão significado à experiência humana. Indicam que todos partilhamos medos, agonias e sonhos. Ouvimos hoje as vozes de homens que viveram há milhares de anos e não nos sentimos mais sós.
colagem reflexoes mortos
S. Brogan, CC0
Somos um cordão de pérolas unidas por minúsculos prazeres e grandes dores.

Uma vida, qualquer vida, é capaz de inspirar um romance – mesmo que o personagem principal seja alguém obscuro ou cuja experiência trágica servirá de reflexão e aprendizado para os que ainda vão nascer.

Ao narrar algo, o legado dos que viveram antes continuará a desfiar seus pensamentos, a embalar as noites e a preencher os dias com o já vivido. A trilha dos antepassados pode nos inspirar a viver plenamente, experimentando tudo em profundidade: alegrias, perdas, luto e fracasso. Podem nos reerguer, aconselhar e inspirar, indicar que há caminhos possíveis quando a angústia espalhar seu manto de sombras sobre nós, advertir sobre os perigos da jornada. Sabedoria ou tolice, maldade ou idealismo — tudo estará posto à mesa e servido.

No fim de tudo, repito, importa apenas a história de cada um. Se alguém a contar, estará cumprida a profecia dos versos de Shakespeare: enquanto a humanidade puder respirar e ver, os cantos dos poetas nos tornarão imortais — um dia de verão, cujo frescor jamais se extingue.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também