“Minha terra de sol e amendoeiras E de moiras, ardentes feiticeiras Encantadas no fundo das cisternas Fui num berço de fadas embalada N...

A lenda da bela Salúquia

moura castelo portugal
“Minha terra de sol e amendoeiras E de moiras, ardentes feiticeiras Encantadas no fundo das cisternas Fui num berço de fadas embalada Na terra moira que me viu nascer. Fui eu, talvez, a última encantada Ouvindo as fontes ao entardecer...”
Nita Lupi

As lendas de mouras encantadas são um caso verdadeiramente especial de literatura popular. Estas narrativas lendárias só aparecem na Península Ibérica e no Sul de França, regiões que, desde o século VIII, acolheram as invasões muçulmanas, sendo, evidentemente, muitíssimo mais significativas de Norte a Sul de Portugal e em Espanha.

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Castelo Mouro da Penha J. Holland, 1837
Portugal, do “al-andalus” de tão lauta glória e drama, se todas as considerações de ordem geral conhecidas não fossem já suficientes, tem razões adicionais para olhar com especial interesse para o mundo árabe. É que, ao fazê-lo, olha para si próprio. O povo, no seu espírito gracioso, não esqueceu a herança árabe e esse imaginário de singular fascinação, de que as lendas são o melhor repositório. Continuou a perpetuar, de avós para netos e para os filhos destes, as histórias que ficaram agarradas ao nosso solo, em comunhão com os nossos lugares, arreigadas à alma das gentes, presas ao coração e que perduram ainda, através deste pitoresco de afinidades e da maravilhosa sentimentalidade popular portuguesa. Maravilhosa pela cálida mensagem de amor que encerra e pelo perfume de poesia de que se reveste.

Encantamentos ligados à mística solar (os cabelos louros, as meadas de ouro, os tesouros, o solstício de Inverno, a regeneração intrínseca, a fertilidade interminável e cíclica), ao ciclo lunar (as trevas, o recolhimento, o solstício de Verão), à natureza que se interpenetra, à terra, às fragas, à água, a tudo, enfim, quanto é mutável pela força do tempo e da própria vida. E a lenda, que não pode faltar onde existam coração e alma, lá está perpetuando a recordação e os panoramas de feitiço.

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Paisagem portuguesaJoaquim Rodrigues Braga, S.XIX
Não há dúvida que as lendas árabes constituem uma parte significativa do folclore português. Essas lendas são, invariavelmente, histórias de amor cristão e muçulmanas ou vice-versa, em que os personagens são vítimas de um tempo intolerante para com os sentimentos dos amantes separados.

Aclamada de “vila florida do Baixo Alentejo”, Moura está situada no além-Guadiana, banhada pelas ribeiras de Brenhas e Roda, que se unem antes de entrar no rio Ardila, e dista alguns quilómetros de Serpa. O seu passado caminhou, muitas vezes, paralelamente ao desta. Facilmente somos transportados para um tempo distante, quando as vicissitudes de uma época passada, marcada pelas acções dos invasores anteriores e posteriores ao período romano, deixaram o seu registo indelével na organização do território, à medida que esta zona se foi gradualmente incorporando no solo português.
C. Castelia, via GMaps
Do passado mouro guarda reminiscências em cada pedaço de arquitectura, nas lendas e nos cantares, nas suas gentes. Do casario, moldado a taipa ou adobe, ressalta o branco, apenas interrompido pelos tons ocres de uma ou outra fachada, criando texturas que nos transportam ao norte de África. Já os pátios interiores, os ferros forjados nas janelas e os lanternins – pequenas frestas para entrar luz e ar — lembram influências andaluzas.

Moura foi desde muito cedo uma povoação fortificada. O rei D. Dinis consegue os direitos definitivos de Moura em 1295 e promove a remodelação do castelo tal como acontecera em Serpa, embora este apresentasse dimensões mais reduzidas. Foi erguido na sequência do foral dado à povoação por D. Manuel I. Segundo o desenho feito por Duarte d’Armas, no seu “Livro das Fortalezas”, o castelo era composto por uma grandiosa torre de menagem que se erguia no terreiro, circundado por uma muralha torreada. É provável que a primitiva muralha defensiva não fosse dupla. Mais tarde, com as guerras da Restauração, o castelo sofre delapidações várias, ainda que menos do que a fortaleza. Quando se procedeu à sua reconstrução, esta respondeu já ao modelo matriz de construção abaluartada adaptada às novas exigências da artilharia utilizada, rentabilizando ao máximo a eficácia da defesa, até à significativa destruição provocada pelo terramoto de 1755.

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Castelo de Moura CM.Moura
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Moura recebe de Afonso III o seu primeiro foral e os sucessos da sua primitiva conquista aparecem frequentemente associados a uma lenda que fala de uma formosíssima moura chamada Salúquia, filha do grande e poderoso Abu Hassan, governador de certa praça-forte que os cristãos ambicionavam conquistar. Diz-se que nas noites amenas, em que a terra se prateava de luar, a bela Salúquia entoava simples e ingénuas “romanzas” que deixariam os homens enamorados...

Corria o ano de 1226. Salúquia estaria para casar com Braffma, um jovem nomeado para alcaide do castelo e governador da vila espanhola de Arronches, a antiga Arucci Vetus. Certo dia, estando Salúquia à espera do seu apaixonado para
comemorar a boda, debruçada de uma torre de Azmi, segurando um conjunto de chaves e um pequeno seixo branco de sidéreas fragrâncias, ter-se-á atirado desta ao saber-se vítima do logro por que passara. As hostes cristãs, comandadas por dois irmãos fidalgos encomendados por D. Afonso Henriques, Álvaro e Pedro Rodrigues de Gusmão, que se encaminhavam sigilosamente para conquistar a povoação, haviam morto numa emboscada o noivo e companheiros numa cavalgada. Envergaram as suas vestes e, fazendo-se passar por aqueles, entraram pela calada da noite no castelo. Com este dramático fim, Salúquia fugira assim ao jugo dos portugueses acompanhando na morte o seu amado, levando consigo o tesouro de virtude que a acompanhava e a paixão que lhe enchia a alma.

Tal é a história lendária da bonita cidade de Moura, anteriormente apelidada de Aruci Novum e Al-Manijah que, em memória da princesa, as armas da vila representam uma torre brasonada com uma mulher, vestida de prata, que ter-se-á lançado por uma janela, com as chaves na mão. As brumas do tempo conservam na memória das gentes as narrativas, as estórias de Moura e do seu castelo.
Dizem que ainda hoje Salúquia circula por ali. Não já no corpo que entregou por amor, mas com o espírito que continua a guardar o seu segredo. E nas manhãs de nevoeiro, quando toda a paisagem se cobre com a película diáfana do mistério, não são poucos aqueles que a conseguem discernir, com os seus olhos fixos no horizonte, numa espera eterna pelo amor que nunca há-de chegar a ser. Dizem também, sobretudo aqueles que vêem com os olhos da sua própria alma, que Salúquia já não é uma mulher, tendo assumido um corpo de cobra que deambula sinistramente pelo meio daqueles que a pressentem...

E à semelhança de qualquer relato distante e desvanecido, da pedra branca – e que depois se fizera vermelha, cor de sangue – do mágico e singular perfume de Salúquia, guardada por um jovem desconhecido como lembrança da bela moura, nada mais se soube, nem mais se saberá...

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  1. Que história linda. Adorei a narrativa. Parabéns.

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