Aos meus nove anos, por aí assim, aquilo me parecia uma ladeira enorme, assustadora, pois feita de água. Fosse por mim, de jeito nenhum eu desceria daquele ônibus. A coisa começava ao nível do chão e subia até tocar no céu, fundindo ambas as cores e seus limites. Não fosse por algumas nuvens, eu não mais saberia onde, lá no fundo daquela paisagem sem fim, começava um e terminava o outro.
Mas o meu medo foi diminuindo enquanto rumávamos para aquele mundão d’água puxada para o verde e, de repente, para o azul. É que a inclinação abrandava à medida em que daquilo nos aproximávamos. Atinei que já conhecia o fenômeno das ladeiras reais, de terra batida: muito encarpadas de longe e mais rasas de perto.
E que cheiro era aquele que me trazia o vento? Minha mãe tentou explicar: “É o cheiro da maresia”. Minutos depois, o veículo estacionava ao lado do Santuário. Que bela paisagem! As mulheres tratavam de visitar a santa e de saudá-la com uma breve oração. As crianças mantinham-se por perto, certamente, com passos tão cautelosos quanto os meus, naquele mundo novo. Os homens, enquanto isso, corriam à barraca mais próxima em busca das primeiras cervejas, doses de conhaque, ou de aguardente.
Dona Celina solicitou a companhia de uma amiga a fim de depositar, numa saleta ao lado, um pé humano concebido em madeira. Alguém havia nele insculpido uma ferida repugnante, avermelhada. A recepcionista pediu que depositassem aquela oferenda em qualquer espaço das prateleiras onde jaziam mãos e cabeças ainda piores do que o pé feridento. “Para que a santa haveria de querer isso?”, perguntei-me. A compreensão daqueles atos e gestos somente me chegaria anos depois. Aquele povo acreditava em que, assim invocada, a graça divina curaria cabeças, mãos, pernas, pés e braços de verdade arruinados em acidentes, ou pelas doenças. Percebi, pouco tempo depois, que as coisas nem sempre funcionam como pretendidas, pois o pé gangrenado levou à cova o pai daquela senhora.
Naquele dia, o coqueiral, o riachinho de água doce e transparente e quilômetros de areia branca logo me fizeram esquecer da apavorante Sala de Ex-Votos do Santuário da Penha. A Praia preferida por dez em cada grupo de dez interioranos – dizem que, em certa medida, ainda hoje é assim – oferecia-me coisas muito mais belas e prazerosas.
Naquela excursão à Penha, percebi lágrimas nos olhos da minha e de outras mães.Aquelas eram águas mágicas. Moviam-se em idas e vindas sem que ninguém as agitasse. Quando se iam, carregavam a camada de areia que tínhamos debaixo dos pés, levando-nos ao desequilíbrio. Quando à altura do umbigo, continham azougue: puxavam-nos para o fundo. Naquela manhã de domingo, foi quando mais tive medo delas.
Mariana e Romildo, não. Já próximos do casamento, esses dois passavam um tempão coladinhos e distanciados de todos, uns 15 metros mais à frente, quase sumidos. Naquele instante, eu não entendi o ar de riso dos homens nem o cochicho entre as mulheres. Pensei que zombassem daquela exibição de coragem, embora não fossem, eles mesmos, corajosos o suficiente para ter a água pelo pescoço, como assim tinha o casalzinho valente.
Fora d'água, as caminhadas nos serviam para catar conchinhas e perseguir caranguejos incrivelmente miúdos, alguns do tamanho de uma unha. Duvidei de que a estrela-do-mar fosse um bicho vivinho da silva, como me contavam.
Não gostei do sargaço nem do sol quente no lombo por volta do meio-dia. À primeira queixa, meu pai conduziu minha mãe e os três filhos até uma casinha de palha, a poucos passos da linha d’água, para a sombra e o almoço contratado com os residentes. Nunca mais, depois disso, comi peixe tão suculento e bom como aquele de postas grossas, sem espinhos, cozidas ao coco. Sentamo-nos em volta de uma toalha de piquenique, esticada no chão de barro, com os meninos da casa. Estes se empanturravam com os pães, as frutas, o arroz de festa, a farofa e o peru assado que tivemos como parte da bagagem. Gelo picado numa caixa grande de isopor ainda mantinha o frescor da salada e dos refrigerantes. E boa parte disso tudo ficou com o casal de pescadores por quem fomos, temporariamente, abrigados.
Deixamos a praia já perto da noite. Nossos anfitriões nos acompanharam até o pé da escada de muitos degraus. Contei uns 140 deles, mas, menino que então eu era, não ponho, agora, muita fé nessa conta. Criança, todos sabemos, tem a mania do exagero. Tanto que, antes do reembarque no ônibus, vi uma lua cheia do tamanho de Pilar, a cidade de onde quase vim ao mundo.
O avô que me tornei nunca se esqueceu da sua primeira visão do mar. E, por conta disso, guarda dois sentimentos em relação aos nascidos e crescidos nas praias. Inicialmente, o da inveja. Faltam-me a desenvoltura com que se movem na areia e nas ondas, o conhecimento que têm do fluxo e refluxo das marés, a segurança nas pranchas e barcos, a intimidade com crustáceos e peixes.
Depois, me assalta a piedade dos praieiros de nascença. Não têm, não tiveram e não terão as emoções sentidas pelos que, em idade para compreensão do mundo, veem o mar pela primeira vez. Naquela excursão à Penha, percebi lágrimas nos olhos da minha e de outras mães. E vi Seu Ernesto e Dona Emília, passados dos 70, darem-se as mãos com o olhar fixo na eternidade. Tudo isso ficou impresso na minha alma como um carimbo nítido, belo, irremovível. Acreditem.