A música de Noel, que escuto nessa estranha manhã chuvosa de verão, expressa o último pedido do poeta a Ceci, dançarina de um bordel na Lapa e sua grande paixão. Fragilizado pela tuberculose e sob a ameaça da morte iminente, o poeta pede ao pianista Vadico, seu amigo e arranjador, que entregue aquela confissão apaixonada, e triste despedida, ao seu maior e inesquecível amor. Na noite boêmia e sedutora da Lapa, que acolhia os encantos e pecados de Ceci, ela, que trocara Noel por Mario Lago, recebe de Vadico o “Último Desejo“ do poeta:
Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar, sem violão
Perto de você me calo
Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero o seu beijo
Mas meu último desejo
Você não pode negar
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não
Diga que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separação
Às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim
Que eu arruinei sua vida
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim
Esse tema de últimos desejos, numa outra perspectiva, vem à minha reflexão com a notícia da entrada em domínio público das obras de Graciliano Ramos. Em busca de novas publicações, as editoras começam a esmiuçar o acervo do alagoano , inaugurando intensa polêmica com seus familiares, que reagem, esconjurando a apetência editorial, sobretudo no que diz respeito à publicação de textos inéditos. Vem à tona a acirrada discussão em torno da publicação da editora Todavia, pelo selo Baião, de Os Filhos da Coruja, poema escrito sob o pseudônimo de J. Calisto e que, segundo Ricardo Ramos Filho, neto de Graciliano e atual presidente da UBE, recebera instruções explícitas do autor para que nunca viesse a público.
Sim, fico a pensar... é estranho... a vida, algumas vezes, parece degradar desejos, a morte, ao contrário, parece prestigiá-los. Compreendo que atender desejos relativos a espólios literários é bem mais difícil do que realizá-los com relação a espólios amorosos, como no caso de Noel. Patrimônios literários envolvem propriedade intelectual, direitos autorais das obras, manuscritos, rascunhos, correspondências e todos os documentos ligados à produção literária, toda uma lógica moral e jurídica que vai além da clara compreensão do desejo do autor.
Olho pela vidraça da janela e vejo que a chuva forte cedeu lugar a tímidos raios de sol. Noel continua a encher o ambiente... Já não mais na interpretação original de Aracy de Almeida mas na voz possante de Maria Betânia…
Deixo de lado as questões morais e jurídicas implícitas na realização ou não de últimos desejos referentes a espólios literários e num dos meus rompantes de rebeldia, exalto a desobediência: se Max Brod, penso, tivesse atendido a vontade de Franz Kafka de destruir todas as suas obras após a sua morte, não teríamos conhecido O PROCESSO. Amigo íntimo de Kafka, Brod ignorou seu pedido e publicou suas obras, cuja divulgação foi fundamental para reconhecimento do trabalho de um dos maiores escritores do século XX.