A coisa funciona assim: a gente vê algo baseado nas graças e desgraças desse troço chamado civilização e põe-se à procura dos seus agentes de carne e osso. Pois bem, corri ao computador a fim de ler sobre o californiano Michael Burry, o sujeito que trocou a profissão de médico pela de investidor em ações e títulos no indecoroso mercado financeiro. Tipo estranhíssimo, adepto do rock pesado, da bermuda e da camiseta num ambiente de engravatados.
Tomei conhecimento de sua existência por meio de “A grande aposta”, o filme baseado no livro de Michael Lewis (The Big Short), com roteiro de Charles Randolph e direção de Adam McKay. O Oscar de 2016, ano seguinte ao do lançamento, o teve na lista de indicações para melhor filme, melhor direção, melhor ator coadjuvante e melhor edição. Deixo de mencionar as feitas, no mesmo período, para o Globo de Ouro.
A trama ainda envolve três outros gestores de fundos que, a exemplo de Burry, enxergaram, com grande antecedência, aquilo que a mídia, os bancos e o governo americano, solenemente, ignoraram: a iminência do colapso financeiro global decorrente dos títulos hipotecários, os papéis podres com os quais o sistema bancário dos Estados Unidos inundou o mercado e quebrou meio mundo.
Isso mesmo, o filme trata dos bastidores da crise de 2008. Vi-o, esta semana, com atraso de quase nove anos contados da primeira exibição. No silêncio da madrugada, antes dos créditos finais, anotei a legenda: “Quando a poeira baixou após o colapso, US$ 15 trilhões em pensões, valores de propriedade e títulos tinham desaparecido. Apenas nos Estados Unidos, 8 milhões de pessoas perderam seus empregos e, outras 6 milhões, as suas casas”. Artigo na InfoMoney, lido ao amanhecer, me conta que Michael Burry ainda atua nesse ramo e acredita na aproximação, pasme-se, de nova crise global.
Com o velho Donald Trump ainda na presidência da maior potência bélica e econômica do planeta acompanhei aquela arenga com a China. Não muito, mas o suficiente para conhecer a resposta que a ele deu a senadora Hillary Clinton: “Como é possível ser duro com nosso banqueiro?”. Referia-se ela ao fato de ser a turma de Xi Jinping detentora de US$ 805,4 bilhões em títulos do Tesouro americano. Mais de US$ 1 trilhão se computados os US$ 202,6 bilhões ali empacados por Hong Kong.
Outro acontecimento, a falência, em março passado, do 16º maior banco americano, o Silicon Valley Bank, vulgo SVB, traz-me à lembrança outro filme do gênero, o “Grande demais para quebrar”. Preciso revê-lo. Também trata dos bastidores da crise para a qual, 16 anos atrás, Wall Street arrastou a humanidade. O roteiro, desta vez, tem base no livro homônimo do jornalista Andrew Sorkin.
Cynthia Nixon (Michele Davis), William Hurt (Henry Paulson) e James Woods (Richard Fuld) no filme Grande demais para quebrar (Too big to fall, 2011).
Sob a direção primorosa de Curtis Hansom, um conjunto de atores competentes ali encarna figurinhas carimbadas do cenário político e econômico moderno, a exemplo do ex-secretário do Tesouro americano Henry Paulson, de Jamie Dimon (CEO do banco JP Morgan), Dick Fuld (do Lemon Brothers), Lloyd Balnkfein (do Goldman Sachs) e, entre outros, John Mack (do Morgan Stanley).Impagável a cena que reproduz um Henry Paulson de joelho a suplicar o apoio da dona Hillary ao plano de injeção de US$ 125 bilhões no então falido sistema bancário. E ela, irônica: “Henry, eu não sabia que você era tão católico”. Mas contribuiu para aprovação da mutreta com a entrega aos carniceiros da vultosa parcela de recursos decorrentes da cobrança de impostos, enquanto milhões de famílias perdiam suas casas e seus empregos.
Firmado o negócio, uma assistente de Paulson lamentava, estarrecida: “Demos 125 bilhões para solucionar a crise que esse pessoal provocou e o fizemos sem impor nenhuma restrição ao uso desse dinheiro porque, se impuséssemos, eles recusariam. E outro mais, bem aflito, perguntava: “Eles vão emprestar esse dinheiro, não vão?”. Ah, os capitalistas... Privatizam lucros e socializam prejuízos.