As mulheres sempre lutaram por seus direitos seja nos bastidores ou no protagonismo. Se, segundo Homero, uma mantinha sua Ítaca livre dos atacantes/pretendentes na ausência de Odisseu (na sua longa volta de Troia) lá do Gineceu tecendo tapeçarias sem fim, outras, guerreiras, Amazonas segundo o mesmo autor, ajudaram a cidade sitiada lutando corpo a corpo contra os gregos invasores que utilizaram Helena como desculpa para suas ambições territoriais. Penélope, Helena ou Pentesileia foram protagonistas à sua maneira. Entretanto, na divisão dos papéis dos corpos, coube aos homens o heroísmo,
o risco, a força, a dureza, a resistência à dor enquanto que a mulher devia se ocupar da graça, do sorriso, da leveza e da fragilidade, qualquer que fosse a situação. A maioria das tradições atribui importância particular ao papel social da mulher na reprodução, no lar, consagrada às tarefas domésticas e na educação dos filhos. Os relatos de mulheres que fugiram ao estereótipo ficaram, em sua maioria, no campo das lendas e da oralidade e, portanto, fora da memória erudita ocidental.
O mesmo se processou em relação à História das Artes Visuais. A participação feminina nos diversos períodos artísticos foi praticamente apagada fora das telas para as quais posaram. No que diz respeito às suas criações enquanto artistas fora dos eixos hegemônicos, elas sequer eram consideradas como arte. A segunda metade do século XX iniciou o resgate. Hoje podemos afirmar que existiram mulheres artistas trabalhando nos monastérios da Idade Média, nos ateliês renascentistas e nas cortes do Barroco. Existiram mulheres artistas nos bairros boêmios do século XIX, e elas também participaram da consolidação das vanguardas. Existem mulheres artistas nos mais diversos campos da arte ampliada da pós-modernidade. A presença da mulher no universo da criação, portanto, mostra-se não tão limitada como a bibliografia e a crítica tradicional nos querem fazer acreditar.
É a partir de uma história oral que vos transportarei à comunidade quilombola Conceição das Crioulas (situada no município de Salgueiro em Pernambuco), contextualizando-a e refletindo sobre como a noção de decolonialidade de gênero, de raça, da educação e da promoção de um criar artístico local como sinônimo de emancipação se faz presente na práxis desse espaço humano pernambucano quase matriarcal. É a partir dela, da comunidade, que busco a relação com um conceito de nação conjugado no feminino. É a partir da produção simbólica dessa comunidade que nos relacionamos com sua arte.
Da decolonização de geografia, gênero e raça
O nordeste do Brasil e suas características em relação ao gênero e a raça como uma continuação das relações coloniais de poder
Somos as margens dos eixos hegemônicos. Nesse país de contrastes - que Debret nos mostra explícito em suas imagens — elas perduram e na região se exarcebam. Das imagens do artista francês ao diário das nossas ruas e campos nos dias que correm o que realmente mudou? As relações coloniais de poder continuam presentes, explícitas ou sutis, nas múltiplas facetas e máscaras da nossa sociedade estratificada.
No caso do Nordeste do Brasil, onde se localiza a comunidade que se constitui no nosso objeto de relação e reflexão, conceitos profundamente enraizados, entranhados no inconsciente social, preservados por gerações referendam o poder do centro em relação à periferia geográfica; do patriarcado versus emancipação feminina bem como a associação entre raça e marginalidade. A senhora branca de algumas posses permanece em uma postura quase inalterada, desde Debret, no lar. A imagem que inclui o patriarca nos dá a dimensão das ruas.
Essa herança colonial permanece na estratificação social brasileira bem como em seu imaginário. A colonialidade é a manutenção de um conhecimento sobre outro; de uma cultura sobre outra; de um gênero sobre outro; de um corpo sobre o outro. Fugir dessa realidade é um ato de resistência contínuo.
As mulheres da comunidade Conceição das Crioulas rompem com essas várias formas de dominação, inclusive a artística. Lá a esperança se faz presente através das transformações introduzidas no espaço social.
As descendentes de seis negras libertas que ali se instalaram , segundo a história oral comunitária, lutam hoje para continuarem livres. Do quilombo elas resistem direcionando as ambições da comunidade, lutando contra a expropriação de terras quilombolas pelos fazendeiros expansionistas da região e pela transmissão dos valores de sua raça e cultura.
Nunca é demais recordar que na pirâmide social estruturada da sociedade colonial e escravocrata brasileira, nesse mesmo Nordeste onde se insere o Quilombo, os brancos ficavam no topo, distribuídos em posições melhores em relação ao cimo por conta de seu poder aquisitivo. Em um degrau abaixo estavam as mulheres brancas, cidadãs de segunda categoria . Em baixo dessa construção social ficavam os africanos e os povos originários, considerados inferiores. Em um nível mais inferior ainda estavam as mulheres escravas tanto por serem mulheres como por serem negras e escravas. Elas, as mulheres, eram corpos/marionetes. Um corpo sobre o qual “as relações de poder tinham alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-nos a cerimônias, exigem-lhes sinais”.
Corpos femininos, negros, brancos ou indígenas foram submetidos e explorados. Sobre a situação da mulher branca assim se manifesta Gilberto Freyre:
Da mulher-esposa , quando vivo ou ativo o marido não se queria ouvir a voz na sala, entre conversas de homens, a não ser pedindo vestido novo, cantando modinha, rezando pelos homens quase nunca aconselhando ou sugerindo o que quer que fosse de menos doméstico, de menos gracioso, de menos gentil; quase nunca metendo-se em assunto de homem.
Brancas ou negras eram corpos sem voz, embora para a mulher negra as correntes fossem muito mais curtas e o chicote mais frequente.
Primeiro o ferro marca
a violência nas costas
depois o ferro alisa
a vergonha nos cabelos
Na verdade o que se precisa
é jogar o ferro fora
e quebrar todos os elos
dessa corrente de desesperos.
Algumas resistiram. Pernambuco em particular apresenta uma memória importante desta resistência à escravidão. Ela se manifestava concretamente através dos variados modelos de organização social e espacial e estratégias diversas encontradas pelos cativos. Nunca faltaram fugas em Recife e demais localidades pernambucanas. Sem partir para uma revolta aberta os escravizados encontraram fórmulas de oposição ao cativeiro em alternativas sociais (sendo o quilombo a forma opositiva mais radical) que pouco a pouco despertavam a construção de uma consciência negra baseada na solidariedade e, por que não dizer, na sobrevivência.
A fuga era uma decisão extrema dada a hostilidade das alternativas na época. Ela envolvia riscos que iam desde a perseguição e captura pelos capitães de mato até a incerteza do destino nessa comunidade alternativa a qual o fugitivo passaria a pertencer: o quilombo. Quando o escravo fugia, amparado pela possibilidade de um conceito vago de liberdade, ele tinha que se reeducar para ela, o que implicava na aprendizagem da resistência, das técnicas de guerrilha e da adaptação a outras regras diferentes das tantas que ele havia experimentado desde sua captura na África, passando pela travessia no Atlântico e pelas mãos dos seus muitos senhores.
O caminho para a liberdade passava, portanto, por uma conquista principal: a recuperação de sua humanidade natural através do estabelecimento de laços de pertencimento. Sua luta posterior pelo direito ao trabalho e pela conquista gradual de participação dentro do sistema passou, em seu início, pela etapa da busca de um espaço próprio e pela sua integração a ele. Os processos de ocupação territorial por quilombos em Pernambuco se relacionam com o contexto sócio-político do período no qual teve início cada uma das comunidades quilombolas. As mais antigas originaram-se quase sempre de fugas de escravos provenientes de fazendas locais e mesmo de locais mais distantes. Em sua maior parte, elas ocupavam terras que não interessavam aos fazendeiros seus contemporâneos. Eram terras sem dono, terras de ninguém. Foi numa realidade como esta que a história oral do quilombo Conceição das Crioulas situa suas origens: a chegada das negras livres que se estabeleceram na região.
Um conceito de nação: liberdade, educação e decolonização de gênero. Conceituando Nação como a união de pessoas com características históricas comuns que formam um povo o quilombo enquanto espaço de resistência em relação a manutenção da propriedade de suas terras de sua cultura própria poderia ser configurado como uma Nação. No caso específico uma nação conjugada no feminino enquanto espaço de mulheres politicamente ativas que buscavam afirmar sua autonomia e soberania. Uma Nação onde os padrões sociais e culturais discriminatórios com relação ao gênero parecem não mais existir ou pouco significativamente. Nesta nação, as mulheres de Conceição das Crioulas se destacam na luta pela construção de uma identidade e estão no comando.
Conceição das Crioulas, Salgueiro, PernambucoPé na Rua + Univasf
As mulheres e suas ações têm forte significado no quilombo. Principalmente a partir da tomada de consciência da valorização da educação como forma de emancipação do destino de mão de obra doméstica barata. Em paralelo a uma valorização do conhecimento chega-se à conscientização da importância e do significado de raça e identidade passada aos seus descendentes. Resistência para uma nova existência intimamente ligada à formação das lideranças que compõem a estrutura política do quilombo. Segundo Leite (2010):
O papel da mulher é assegurado na descendência. É “nelas que tudo começa”: a fundação da comunidade (incluindo a compra da terra), a origem do nome, a defesa do território frente às “invasões” das quais resultaram expropriações; elas também estão presentes na execução e perpetuação de determinadas práticas ou atividades culturais como os ofícios de benzedeira e parteira e na produção de trabalhos artesanais . As mulheres que se dedicam a essas atividades dizem ter aprendido com suas mães e avós.
A expressão criativa comunitária, sua arte, relaciona-se intimamente com essa luta. Como exemplo, a confecção e representação das mulheres marcantes do espaço social. Buscando seus próprios símbolos, elas se utilizam do caroá (uma espécie de bromélia nativa do Nordeste brasileiro) para representar a força das mulheres da comunidade. Pequenas bonecas portam os nomes dessas mulheres/símbolos. E elas atualizam técnicas ancestrais de beneficiamento da fibra tradicional da região. E elas passam as suas descendentes essas atividades como forma de manter a história e de prestar homenagem às raízes, aos antepassados. As mulheres que fazem parte do grupo de produção também encontram nas técnicas da cerâmica e do bordado uma forma de contarem sua história. A priorização do coletivo as faz distribuírem a produção igualmente e assim gerar uma fonte de renda para todas.
A batalha é contínua. As crioulas de Conceição romperam com a tradição secular de subserviência social. Elas têm consciência da importância dos saberes, de sua transmissão e da dominação que pode estar agregada ao processo educacional. Nas palavras de Maria Diva da Silva Rodrigues:
Maria Diva
As escolas ensinavam para a gente de forma bem sutil que era feio ser negro, que nosso cabelo por ser pixaim era feio. Então era para se dizer que era moreno, moreno escuro, moreno claro. Negar que era de Conceição porque ser de Conceição era ruim, porque era um lugar atrasado onde só tinha negro e negro não era uma coisa boa.
Elas interromperam com esse discurso e propuseram para as escolas da comunidade um currículo alternativo no qual os valores ancestrais fossem contemplados e que contribuísse para semear orgulho e não vergonha de suas origens. A consciência desse instrumento libertador está presente nas palavras de Gilvânia Maria Silva, uma das principais lideranças do quilombo:
Gilvânia
Mergulhadas numa busca constante de ações direcionadas à educação, à saúde e ao reconhecimento de sua cultura, do processo da reconstrução da identidade e de seu território. Mesmo diante do cenário de dúvidas, a educação era entendida pelos seus moradores (as) como atividade importante
Hoje as líderes Gilvania Maria da Silva, Aparecida Mendes, Márcia Jucilene, Maria Diva e Valdeci entre tantas outras são mulheres que sabem e constroem os caminhos a serem percorridos. São os pilares atuais da comunidade na vanguarda dos caminhos a serem percorridos. Elas objetivam novas formas de serem e permanecerem livres. A liberdade física almejada pelas fundadoras do quilombo transformou-se na luta pela cidadania, pela identidade e pelo pertencimento em toda a sua plenitude. Da AQCC (Associação Quilombola de Conceição das Crioulas) as mulheres vivem uma proposta de Nação alternativa.
Um olhar relacional para as artes visuais
Para Nicolas Bourriaud, a possibilidade de uma arte relacional “uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das relações humanas e seu contexto social”atende aos objetivos estéticos, culturais e políticos postulados pela contemporaneidade e estaria contribuindo para a preparação de um mundo futuro. Pressente-se já, através do seu pensamento, a necessidade de retomada de uma política ligada a uma transformação estética, ou, como quer Carlos Vidal “uma refundação da linguagem estética que ultrapasse a fatalidade do triunfo da industrialização do pensamento".
Confeccão de bonecas de caroá. Comunidade Conceição das Crioulas.Univasf +
conceicao_das_crioulas
A arte contemporânea desenvolveria, portanto, um projeto político quando se empenha, por exemplo, em investir e problematizar as esferas das relações humanas. Essa condição corresponde, hoje, à iniciativa de artistas (e pesquisadores) que mergulham no campo ampliado da criatividade, no qual o caráter político é relacionado ao fato de uma integração do trabalho artístico com a vida. O trabalho da arte, nas suas novas formas, ultrapassa a antiga produção de objetos destinados a serem vistos e consumidos e investe em novos horizontes que funcionam ora como mapas que orientam seu movimento, ora como motor de um desejo de caminhar novamente em busca de um ideal. Caberia ao artista desprogramar a realidade para reprogramar uma estética que se pautaria em função das relações inter-humanas.
Uma estética que contemple o “outro”, legitimando-o. O mundo da arte e da vida estaria, então, de fato, cada vez mais fundido e a estética, como ciência do sensível, em consonância com esse novo olhar.É trabalhando neste intervalo micropolítico, que o movimento intercultural IDENTIDADES, nascido em Porto, Portugal e do qual fui membro efetivo e hoje pesquisador associado se manifesta. Trata-se de um movimento artístico, atuante desde os anos 90, mais precisamente concebido em 1996, que participa dos conflitos da era pós-colonial tendo como objetivo as relações culturais diretas em vários espaços geográficos do planeta de histórico colonial português.
Atuando em comunidades situadas em três espaços geograficamente distintos e com características específicas, o movimento mobiliza artistas, pesquisadores, professores e estudantes de arte que, fora do seu espaço de conforto buscam, através da reflexão partilhada, interagir nestes três espaços sociais. A partir de Porto, como já foi dito anteriormente, ele se relaciona com espaços de colonização lusa: Moçambique, Cabo Verde e Conceição das Crioulas no Nordeste brasileiro.
O envolvimento do movimento na comunidade quilombola Conceição das Crioulas segue essa proposta e “assume a ação como intervenção política em contextos onde a população se envolve em seu próprio desenvolvimento”
A relação do movimento com a comunidade iniciou-se em 2003. O primeiro contato se deu através da Fundação Joaquim Nabuco via o seu presidente, Fernando Freire. Contato estabelecido foi criado uma oficina de artes plásticas ministrada por Iva Correia e Monica Farias (de Porto) e uma de teatro que foi dada pelo ator moçambicano Rogério Manjate. Montou-se uma exposição em uma das dependências de uma escola local intitulada “Panopara Mangas” onde o movimento foi apresentado para a comunidade.
A partir de uma troca de ideias com a comunidade e da explicitação das intenções do grupo, foi aprovado um programa intitulado “Deslocações” que se centrava em intervenções através das linguagens do Vídeo, do Webdesign, da Cerâmica, da Educação Visual e da Expressão Plástica. A proposta foi aceita pela comunidade e o grupo retornou em 2005 e, através da preparação de seis jovens da comunidade, durante nove dias possibilitou-se a criação de um coletivo intitulado “Crioulas Vídeo” que passou a se constituir em mais uma ferramenta na luta pela identidade local através da produção de vídeos que divulgam a sua história e realizações até então contada por olhares externos. Vários documentários foram produzidos desde sua criação.
Atualmente, a ação do IDENTIDADES centra-se principalmente no trabalho desenvolvido com as professoras, para que elas adquiram as competências necessárias para o ensino da arte na comunidade. É importante recordar que, neste espaço social, o conceito erudito ocidental de arte não existe. Seus habitantes se expressam através do artesanato, da dança, da música e da culinária a partir de um olhar referencial. A arte só é compreendida a partir de seus reflexos práticos sobre a comunidade e de como ela pode servi-la. Ao historiador da arte a ação de decolonizar sua visão.
Formar professores na área artística poderia contribuir para uma forma mais ampliada de percepção e fruição da arte. Para uma ampliação da sensibilidade dos alunos o que poderia gerar outras percepções e competências sempre tendo em vista, porém, que, para uma comunidade que se propõe a andar sozinha, como é o caso de Conceição das Crioulas, e que anseia por uma educação baseada em currículo diferenciado, tendo como comparação o currículo formal que é visto como sendo externo e global, o ensino da arte deve acompanhar suas particularidades.
Objetos de arte, roupas e acessórios produzidos na comunidade quilombola de Conceição das Crioulas ▪ Fonte: Pé na Rua + Fenearte
Com uma proposta de educação diferenciada, a comunidade quilombola de Conceição das Crioulas pretende encontrar outras modulações para as oposições entre periferia e centro, atrasado e desenvolvido, subalterno e dominante, popular e acadêmico, a partir de relações de reciprocidade e de diálogo. A arte pode ser uma de suas rotas e o Movimento Intercultural IDENTIDADES contribui para que a comunidade a percorra. Márcia Jucilene Nascimento, professora e ativista de Conceição das Crioulas, acredita nisso. Diz ela:Márcia
Penso que Arte é o que a gente faz com amor, com dedicação, com cuidado. Ela é intencional, e pode ser representada de diversas formas e em diversos campos: político, social, religioso, cultural etc. O que é mais forte no nosso lugar é a arte de lutar coletivamente pelo bem da comunidade.
Entrevista concedida à autora (Madalena Zaccara) em 2015.
O bem da comunidade conjugado no feminino encontra caminhos, procura rotas, aceita parcerias. As Crioulas de Conceição atualizam-se na difícil missão de representarem uma Nação livre no interior profundo do Nordeste brasileiro. Nessa caminhada o IDENTIDADES busca ajudar com algumas pontes.