Sempre quando chegávamos ao local do trabalho, antes de qualquer atividade, íamos até a árvore onde o beija-flor preparou seu n...

O primeiro voo do beija-flor

Sempre quando chegávamos ao local do trabalho, antes de qualquer atividade, íamos até a árvore onde o beija-flor preparou seu ninho, botou dois ovos, chocou-os e criou seus filhotes, até voar para a liberdade.

Na realidade, o pequeno ninho chamava atenção desde o momento em que o beija-flor preparava sua obra de arte. Observávamos à distância o repouso dos filhotes. Um trabalho silencioso, meticuloso e persistente que me trouxe certas lições, pois lembro de empreendimentos que foram abandonados ao primeiro empecilho.

José Nunes
Grandes sonhos carecem de grandes atitudes.

O obstáculo do beija-flor foi o local escolhido para edificar seu ninho. Lugar movimentado, a baixa altura da árvore e a ventania no local dificultavam a sua construção.

Muitas vezes observei beija-flores construindo ninhos nas árvores que tínhamos em redor de nossa casa em Tapuio, isso porque mamãe cultivava jardim com flores de diversas espécies, o que os atrai. Era um vai e vem de beija-flor pelas bordas do jardim, que depois desapareciam e retornavam logo a seguir.

Quando eu cresci, continuei a observar o esvoaçar dos beija-flores do jardim de minha mãe. Fui embora para outras terras, mas levei comigo os voos daqueles pássaros que não cantavam como os canários, os pintassilgos e os galos-de-campina, mas chamavam a atenção pelo modo com que se aproximavam das flores e rodopiavam para captar o néctar, em sadia disputa com as abelhas, em bonito bailado.

Quando percebi que o beija-flor chocava os ovos, passei um tempo sem me aproximar para não incomodar a mãe carinhosa. Depois que os filhotes nasciam e cresciam, em certas ocasiões, observava os dois agarradinhos. Um maior e outro menor. Cresceram, sempre iguais nas cores das penas brancas e pardas.

José Nunes
Cheguei atrasado na manhã, com o sol vencendo as folhas das árvores, iluminando o ninho ocupado pelo filhote menor, porque o irmão maior alçou voo cedo do dia. Era preciso não o espantar, dei um passo para atrás. Fotografei, como das vezes anterior. Precisava registrar aquele instante, como procedi em outras ocasiões. Permaneci por instantes a beber da poesia do olhar e dos gestos do passarinho acomodado em seu ninho.

Era tempo do beija-flor iniciar sua travessia. O pequeno beija-flor, do tamanho do dedão do pé de uma pessoa, iniciou sua travessia em voo rápido, indo para uma árvore mais alta. Se não acompanhasse seu irmão naquele momento, ficaria à margem de si mesmo. Precisamos compreender o tempo de nossos próprios voos. Como disse o poeta “E o tempo da travessia, se não ousarmos fazê-la teremos ficado para sempre à margem de nós mesmos” (Fernando Pessoa).

José Nunes
O beija-flor buscou novas paisagens, novos encontros. Foi estar com seu irmão, estar com sua mãe. É preciso buscar outros horizontes. Ficar atento para entender o momento de caminhar, como revelou o poeta lusitano.

Tenhamos a certeza de que sempre haverá alguém a nos proteger, a nos guiar. Na minha curiosidade, ao chegar perto do ninho vazio, eis que ligeiro como um raio, o beija-flor mãe passou roçando minha cabeça, como que a dizer, afasta-te daí, tão rápida que não percebi o ruge-ruge das asas.

Fiquei a contemplar o ninho vazio. Como é belo seu traçado de penugens, meditei sobre as cenas presenciadas naquele dia e nas vezes anteriores. Em toda minha vida, poucas vezes estive tão perto desse pássaro esquivo e belo.

Minha alma ficou maior depois daquele dia. Construí um novo advento na minha vida. Há sempre distante uma estrela a brilhar. Veremos essa estrela quando olharmos com os olhos do coração. Então, estaremos sempre voando para cruzar a travessia. Sempre tem o primeiro voo do beija-flor.

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