É possível que músicas de grande sucesso popular sejam canções sofisticadas, com melodias rebuscadas, harmonias elaboradas, andamentos incomuns e que foram gravadas com primorosos arranjos e orquestrações bem produzidas? A resposta afirmativa é demonstrada com a obra do compositor, pianista, maestro e arranjador norte-americano Burt Bacharach falecido, em fevereiro de 2023, quando se aproximava dos 95 anos de idade.
Burt Bacharach era o que comumente se chama um hitmaker, tendo, nas décadas de 1960 e 1970, conseguido colocar mais de 50 canções no topo das principais listas das músicas mais executadas e vendidas em todo o mundo. Praticamente todos os grandes intérpretes daquele período, de estilos os mais diversos, gravaram músicas suas: The Beatles, Frank Sinatra, Elvis Presley, Carpenters, Ella Fitzgerald, Tony Bennett, B. J Thomas, Aretha Franklin, Johnny Mathis, Roberta Flack, Herb Alpert, The Shirelles, Stevie Wonder, The Drifters, os brasileiros Sergio Mendes, Astrud Gilberto e a Orquestra Tabajara e tantos outros. A cantora norte-americana Dionne Warwick é a voz que é mais identificada com as composições de Bacharach.
Burt Freeman Bacharach nasceu em Kansas City, mas a sua família se mudou para Nova York quando ele tinha quatro anos de idade. Começou a estudar piano e violoncelo ainda criança e, com 15 anos, formou uma banda de 10 componentes para tocar em festas, na qual ele era o pianista. Bacharelou-se em Música e, depois, fez especialização em teoria e composição tendo como um dos professores o francês Darius Milhaud. Nos dois primeiros anos da década de 1950, período em que prestou o serviço militar, Bacharach não se desligou da música, atuando como pianista e maestro de uma banda de baile para os militares.
Após deixar o Exército, Bacharach passou a trabalhar como pianista acompanhando alguns intérpretes que tiveram algum sucesso na época, como Vic Damone, Ames Brothers, Steve Lawrence, entre outros. Em 1957, Burt Bacharach firmou uma parceria com Hal David (1921-2012) que faria as letras dos seus maiores êxitos musicais. A dupla conseguiu inicialmente colocar duas canções nas paradas de sucesso, The Story of My Life com Marty Robbins e Magic Moments interpretada por Perry Como. Em 1958, Bacharach conseguia ter outra música na lista das mais executadas, o tema de abertura do filme The Blob, mas o seu nome nem apareceu nos créditos da película.
Em 1958, um encontro mudaria a vida de Bacharach. Foi nesse ano que ele conheceu a atriz e cantora alemã Marlene Dietrich, passando a ser o seu pianista e arranjador. Nascida em Berlim em 1901, Marlene Dietrich teve educação esmerada e se encaminhava para uma carreira como violinista quando uma lesão na mão a tirou do caminho da música clássica. Decidiu, então, ser atriz. Atuando em papéis sem muita importância foi descoberta, em 1930, pelo diretor austríaco Josef von Sternberg que a escolheu para atuar em O Anjo Azul, o primeiro filme sonoro alemão, uma adaptação de um romance de Heinrich Mann, irmão mais velho de Thomas Mann. Para o crítico José Geraldo Couto, Sternberg ficara fascinado pela atriz, de quem viria a ser amante, e “levou-a a Hollywood com o intuito de torná-la uma nova Greta Garbo [...] Fizeram sete filmes juntos [...] Poucas vezes houve uma relação tão profunda entre uma estrela e seu criador”.
A marcante interpretação de Marlene Dietrich como Lola-Lola, a insinuante dançarina do cabaré O Anjo Azul, iniciaria a sua repentina ascensão como uma das principais atrizes do cinema mundial. Além das películas em que foi dirigida por Sternberg, Dietrich participou de filmes dos cineastas de maior destaque na sua época como Billy Wilder (Testemunha de Acusação e A Mundana), Orson Welles (A Marca da Maldade), Alfred Hitchcock (Pavor nos Bastidores), Fritz Lang (O Diabo Feito Mulher), René Clair (Paixão Fatal) e outros. Marlene Dietrich se tornou uma atriz admirada em todo o mundo ao ponto de, no início da década de 1950, uma polêmica nos jornais do Rio de Janeiro contrapôs os poetas Carlos Drummond de Andrade, partidário de Greta Garbo, e Vinícius de Moraes, um arraigado adepto de Dietrich, que escreveu sobre as razões que o levaram a adorar a atriz alemã:
“Quando eu andava aí pelos meus dezessete, era para o retrato dessa mulher, preso à parede do meu quarto, que eu olhava todas as noites antes de dormir. Tinha por ela um amor cego, irreprimível, absoluto. Via-lhe os filmes oito, dez vezes. Ela era grande, loura [...] Sua fala era grave e doce, e ela cantava umas canções com uma falta de voz que era a voz mais linda do mundo [...] Essa mulher, essa das pernas longilíneas e luminosas chamava-se, ou melhor, chama-se Marlene Dietrich.”
No início da década de 1950, Marlene Dietrich obteve grande sucesso ao participar, em Nova York, de um espetáculo beneficente e nas suas próprias palavras “essa apresentação foi o início de uma nova aventura: comecei agora a aparecer ‘em pessoa’, não mais só na celulóide”. Dietrich passou, então, a privilegiar a sua atuação como cantora. Após alguns anos atuando em Las Vegas, Marlene Dietrich se viu, em determinado momento, sem o concurso do seu maestro que lhe sugeriu outro músico, que ela não conhecia, para acompanhá-la. No seu livro de Memórias, Dietrich relata em uma frase arrebatadora o seu encontro com Burt Bacharach: “Então, certo dia, entrou na minha vida o homem que me elevou ao sétimo céu”. Na sua obra memorialística, Marlene Dietrich dedica um capítulo inteiro do livro a Bacharach no qual descreve o primeiro ensaio que fizeram:
“Ele tocou uma canção atrás da outra, às vezes fazia anotações e então disse: ‘Amanhã, às dez horas, de acordo?’. Eu fiz que sim e ele foi embora. Sequer perguntei-lhe onde estava morando, e não saberia como encontrá-lo, caso não surgisse na porta no dia seguinte. Mas estava certa de que voltaria – o que não sabia é que ele viria a ser o homem mais importante na minha vida depois que tomei a decisão de dedicar-me totalmente ao palco.”
Essa união dos dois grandes artistas tanto alçaria para a fama o nome de Burt Bacharach como alavancaria o prestígio de Marlene Dietrich como cantora. Segundo Dietrich, quando eles se conheceram “o nome Burt Bacharach não era conhecido do público [...] Foi rejeitada minha proposta de escrever seu nome nos luminosos de Las Vegas ao lado do meu”. Esta situação poderá ser comprovada quando, em julho de 1959, no início da parceria entre a atriz celebrada e o músico ainda sem o sobrenome com o qual viria a ficar famoso, eles vieram ao Brasil para se apresentar no Rio de Janeiro e em São Paulo. O jornal carioca Correio da Manhã noticiou, assim, a chegada de Dietrich e Bacharach ao Rio: “Marlene Dietrich, acompanhada do seu pianista Burt Freeman e de sua ‘dame de chambre’, chegará esta manhã [...] A famosa artista estreará na próxima segunda-feira no Golden Room do Copacabana Palace”.
A passagem de Marlene Dietrich pelo Rio de Janeiro foi apoteótica. Teve direito a audiência com o Presidente Juscelino Kubitschek e foto ao lado do nem sempre sorridente Marechal Lott que, no ano seguinte, seria o candidato governista à Presidência da República derrotado por Jânio Quadros. Os espetáculos realizados no Golden Room do hotel Copacabana Palace foram um estrondoso sucesso. A revista Manchete comentou que no primeiro show “Marlene fez a orquestra mudar de tom duas vezes (teve pouco ensaio) e terminou por beijar o seu pianista, bonitão, na boca”. As apresentações de Dietrich no Golden Room originaram o disco “Dietrich in Rio” lançado pela gravadora Columbia. Neste álbum Marlene Dietrich incluiu uma música brasileira, Luar do Sertão,
Marlene Dietrich escreveu nas suas Memórias que, a partir do seu encontro com Bacharach passou a viver “só para os concertos e para ele. Essa foi a mais radical mudança em minha vida. Depois de ter sido jogada num mundo do qual nada sabia, eis que de repente encontrei um mestre [...] Tivemos um êxito retumbante, recebemos críticas brilhantes”.
Embora Bacharach tenha negado em entrevistas ter existido algo mais entre ele e Dietrich do que a relação profissional entre o maestro e a cantora, as declarações extremamente amorosas de Marlene sobre ele no seu livro (“como homem ele personificava tudo o que uma mulher podia querer”) deixam uma dúvida imensa sobre isso. A diferença de idade dos dois (27 anos) não seria nenhum problema, até porque na vida real Dietrich continuava a mesma femme fatale dos seus fimes, sem preferência de gênero.
No início da década de 1960, as músicas compostas por Bacharach começaram a despontar com frequência no hit parade como foram os casos de Any Day Now, Please Stay, Make It Easy On Yourself, Don't Make Me Over e The Man Who Shot Liberty Valance inspirado no western clássico homônimo de John Ford (no Brasil O Homem que matou o Facínora). As composições de Burt Bacharach faziam sucesso por todo o mundo e Baby It's You, gravada originalmente pelo grupo vocal feminino Shirelles, foi incluída, em 1963, no álbum de estreia dos Beatles.
Marlene Dietrich relata no seu livro que, quando Bacharach “ficou famoso não pode mais acompanhar-me nas minhas viagens pelo mundo [...] Quando me abandonou, deu vontade de jogar tudo para o ar. Havia perdido meu guia, meu apoio, meu professor e mestre [...] Acho que ele não se dava conta do quanto dele eu necessitava”. Dietrich continuou se apresentando como cantora e só voltaria a atuar no cinema em 1978, em “Apenas um Gigolô”, que seria seu último filme. Marlene Dietrich faleceu em 1992 aos 91 anos.
Casado com a atriz Angie Dickinson, Bacharach começou a trabalhar também para o cinema, iniciando com vários êxitos What’s New Pussycat, Alfie e The Look of Love e o tema de abertura do filme Casino Royale. Em 1970, Bacharach foi premiado com dois Oscar, o de melhor trilha sonora e melhor canção, pelo filme Butch Cassidy and The Sundance Kid, e Raindrops keep fallin' on my head, na voz de B. J. Thomas, tornou-se um dos seus maiores sucessos. Em 1982, Burt Bacharach voltaria a ganhar um novo Oscar com Arthur's Theme, a canção de “Arthur o Milionário Sedutor”. I Say a Little Prayer, um dos maiores êxitos da carreira de Burt Bacharach e que teve uma gravação magistral de Aretha Franklin, apareceu com grande destaque em filme do final da década de 1990.
Bacharach, depois das apresentações com Marlene Dietrich, em 1959, veio outras vezes ao Brasil, a última em 2013, quando já estava com 85 anos. Permaneceu ativo até os seus últimos dias se envolvendo com intérpretes e compositores mais jovens, como Elvis Costello e outros. Burt Bacharach faz parte da galeria dos principais compositores de música popular de todo o mundo, ao lado de nomes como Cole Porter, Jerome Kern e Tom Jobim.