Rosa Freire d’Aguiar, jornalista, tradutora e escritora, viúva amorosa de Celso Furtado, vem organizando e publicando importante material da lavra do economista, deixado inédito. Ela já publicou, entre outros, os diários e a correspondência intelectual do paraibano de Pombal que brilhou no cenário do mundo, para justo orgulho aldeão e nacional. É uma tarefa imensa e minuciosa, explicada não só pelo zelo intelectual, mas principalmente pelo afeto e pelo senso de obrigação de divulgar escritos e ideias que são patrimônio da cultura brasileira e mundial. Só para o volume das missivas (Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2021) ela leu cerca de 15 mil cartas, “anotando nomes, assuntos, cotejando datas e assinaturas, não raro decifrando as manuscritas, em várias línguas.”. Trabalho de Hércules, como se vê, e levado a êxito, indiscutivelmente.
Segundo ela, o epistolário publicado é de índole eminentemente intelectual, já que a correspondência de caráter mais pessoal e íntimo foi deliberadamente afastada, dada sua natureza privada. As cartas selecionadas, segundo Rosa, “é a evidência de que os missivistas expunham sua visão do mundo, opiniões, dúvidas, com admirável franqueza. Trata-se, assim, de um conjunto singular de cartas que traduzem a efervescência do pensamento de cada um, por vezes até mesmo uma espécie de convocação a amigos com quem trabalharam, dividiram planos, expectativas.”. Sim, e não esqueçamos que boa parte dessas missivas foram escritas durante o período da ditadura militar (1964-1985), quando vários dos missivistas estavam no exílio ou sendo perseguidos no Brasil, e que, portanto, seria inevitável que a resistência democrática e até mesmo algumas agruras pessoais daí decorrentes povoassem parcialmente a correspondência. Nessas cartas, pode-se dizer, tem-se um fiel retrato dos tempos negros que tanto marcaram a segunda metade do século XX no Brasil e em países vizinhos.
Para que o leitor tenha uma ideia do gabarito dos correspondentes, cito os seguintes: Adhemar Nóbrega, Antonio Callado, Antonio Cândido, Cleantho de Paiva Leite, Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Francisco Iglésias, Francisco Weffort, Hélio Jaguaribe, José Leite Lopes, Roberto Campos, Luciano Martins, Márcio Moreira Alves, Maria da Conceição Tavares, Octávio Ianni, Otto Maria Carpeaux, Plínio de Arruda Sampaio, Thiago de Mello, Albert O. Hirschman, Ernesto Sábato e Raúl Prebisch, sem falar em Robert Kennedy e Fidel Castro. Sem dúvida, uma constelação de notáveis, capaz de despertar a curiosidade de todos. É um verdadeiro diálogo de inteligências e de sensibilidades, cuja leitura enriquece o cabedal de qualquer um. Eu diria mais – e sem exagero: é um pequeno/grande tesouro intelectual, digno das melhores estantes.
Como bem lembrou Luiz Felipe de Alencastro no posfácio:
“Furtado pertence à última geração de intelectuais que cultivou o hábito de redigir cartas manuscritas ou datilografadas, geralmente com uma cópia feita com papel-carbono que servia para dar continuidade a assuntos da correspondência.”.
É verdade. E, ao que parece, esse é um tempo que findou. As pessoas agora falam ao celular ou trocam e-mails, no mais das vezes contentando-se apenas com isso. É de se indagar a dimensão do prejuízo que tal prática poderá (ou não) causar aos historiadores e pesquisadores do futuro.
Não preciso salientar que todas as cartas do volume são importantes, tanto as enviadas por Furtado, quanto as por ele recebidas. São todas documentos e testemunhos valiosíssimos, sob quaisquer pontos de vista. Do conjunto epistolário, entretanto, escolhi para me deter nestes rápidos comentários de cronista as relativas a Thiago de Mello, original voz poética da amazônia e do Brasil, pelas razões que exponho a seguir.
Primeiro, por tratar-se de um poeta, um imenso poeta, o missivista. Despertou-me logo o interesse assim que vi seu nome entre os correspondentes. Pensei: sobre o que conversaram o economista e o poeta? Que tema os uniram, profissionais que foram de áreas tão distintas – e até antípodas. Pois haverá espaço para a poesia na economia e, ao contrário, para a economia na poesia? Quem sabe? O fato é que essa aparente oposição chamou-me a atenção, levando-me às suas cartas prioritariamente. Não desconheço, ressalte-se, o sempre declarado apreço do economista pela literatura, inclusive seu irrealizado projeto de escrever um romance. Portanto, é lícito afirmar que se a poesia não frequentou a economia propriamente dita, ao menos habitou próxima ao economista, o que não é pouca coisa.
Segundo, porque o poeta, em sua carta de 3 de maio de 1974, enviada de Mainz, na então Alemanha Federal, refere-se ao “perfume dos cajueiros públicos, que vão de João Pessoa a Cabedelo.”. Para um pessoense da gema, poderia haver maior emoção? Principalmente para alguém que na já distante infância conheceu de perto esses cajueiros nativos e sentiu intensamente seu perfume típico, embriagador. Meus contemporâneos sabem: toda a nossa orla marítima, até Cabedelo, era um imenso cajueiral nativo até os anos 1960. Pouquíssimas casas de veraneio quebravam a uniformidade da paisagem colorida pelos cajus vermelhos e amarelos, tantos, que não havia quem os colhesse – e eles então caíam dadivosamente no arenoso chão e alimentavam fartamente os passarinhos de todos os cantos. Bucolismo? Sim. Em plena urbe.
Lembro-me de que, no verão, ia passar dias na casa praieira de Nilsinho, amiguinho dos meus primeiros anos, e que ao entardecer saíamos eu, ele e seu pai (Seu José Luna) com cestas e varas na mão, exatamente para colher esses cajus que pareciam eternos e que infelizmente sumiram por força da crescente urbanização de nosso litoral, a partir dos anos 1970 ( Olha aí a economia se confrontando com a poesia). O perfume das frutas era de fato fortíssimo, inebriante, e ainda hoje, ao senti-lo, mesmo que fracamente, numa feira ou supermercado, sou remetido de imediato, pela memória olfativa, àquelas inesquecíveis lembranças infantis.
Grande serviço histórico e cultural tem prestado ao Brasil Rosa Freire d’Aguiar. Não fosse o seu dedicado cuidado, esse rico acervo furtadiano correria talvez o risco de não chegar aos estudiosos e leitores. Em sua introdução ao epistolário, ela registrou seu “toque de subjetividade” na seleção das missivas. Mas nem precisava. Pois sabemos todos que na arte e nas letras tudo – ou quase tudo – é subjetivo. E não poderia deixar de ser assim. E ainda bem que é assim. O sujeito prevalecendo sobre objeto, pois é quem lhe dá sentido.