Coló me chamou de mentiroso. Ele mesmo, o saque mais rápido e eficiente da cidade, o camarada à procura rotineira por rolinhas, em capoeiras e quintais, com baladeira em punho e pés de algodão. Conseguia se aproximar dessas bichinhas sem fazer barulho até alcançar a distância suficiente para o tiro certeiro.
Mas não o condenemos, pois assim o fazia a fim de obter a porção de proteína que a indigência familiar sonegava aos irmãos pequenos e à mãe viúva. Matava por precisão, não por esporte. Tinha a natureza, as habilidades e, de certo modo, as carências de um desses índios da mata. Dessem-lhe arco e flecha e ele não retornaria sem caça, assim eu achava.
Mas me chamou de mentiroso com as licenciosidades dos seus onze anos, idade que também era a minha. Passava eu, então, as primeiras férias escolares na casa paterna desde o embarque para a continuidade dos estudos primários no Recife. Descansávamos do trave-a-trave com bola de meia quando me perguntou: “Recife é muito grande?”. Respondi: “Muito. Só na área onde moro cabem umas vinte Pilar”.
Isso já foi o bastante para que me olhasse com desconfiança. Tentei explicar o que era um bairro com exemplos que tínhamos à vista desde o nascimento. “Há o centro da cidade e há os pontos mais afastados como a Maloca, a Serventia, a Rua do Emboca e o Compra-Fiado. No Recife, isso tudo é bairro bem comprido”.
Contei do percurso dos Rios Beberibe e Capibaribe e das pontes que uniam as duas bandas das ruas. “Sabe Veneza?”. É claro que não sabia. Porém, foi quando falei dos edifícios que ele, de fato, se espantou. “Difícil?”. E eu: “Não, e-d-i-f-í-c-i-o”. Ouviu de mim que isso era troço tão alto que, às vezes, podia receber o nome de arranha-céu. Uma casa em cima da outra, uma casa em cima da outra, uma casa em cima da outra... e por aí vai.
“Maior do que a torre da Igreja?”, quis saber. Disse-lhe que, se brincassem, alguns davam quatro ou cinco torres daquela. Aí, veio-lhe a preocupação com o tamanho das escadas. “Os moradores vão chegar mortinhos, lá em cima”.
Tive que fazer o que já tentava evitar: falar do elevador. “É como se fosse um quartinho apertado, com um botão na porta. Você aperta esse botão e o bicho, sozinho, vai buscá-lo. Lá dentro, com a porta já fechada, você escolhe numa fileira de outros botões numerados até onde quer subir. E o bicho obedece”. Deu-me, em troca, um ar zombeteiro e um “Vixe, Maria”. Fazer o quê?
Paulo me contava, depois: “Coló disse que você voltou do Recife mentindo feito o cão”. Bem que este meu amigo tentou me defender. Parou quando, ele próprio, sentiu o deboche de outro participante do nosso grupo. Acostumado, como eu, ao Recife, o galego Gilson lembrou que nosso Paulo nada conhecia maior do que o Ipase, o antigo Instituto de Previdência e Aposentadoria de Servidores do Estado, prédio com altura insignificante, no coração de João Pessoa. Preciso dizer que esses dois, penosamente, se foram deste mundão de Deus, há pouco tempo, quando a Capital da Paraíba exibia algumas das edificações mais elevadas do País.
Nada, certamente, capaz de assombrar um Coló exportado pela má sorte, na adolescência, para os guetos e favelas do Rio e, em seguida, de São Paulo, ao que informaram alguns amigos em comum por ocasião de uma das minhas visitas à cidadezinha onde quase nasci. Cheguei ali com seis meses de vida.
Mais do que da perda definitiva dos companheiros bem-sucedidos na vida em razão do estudo e da boa remuneração, eu me ressinto das partidas de gente como Coló a quem a má sina reservou suas cotas pesadas de suor e padecimento.
Não sei se ainda vive o menino que desacreditava dos arranha-céus nem que família constituiu. Seja como for, torço para que seus filhos, caso existam, tenham obtido dos deuses, ou das circunstâncias, os meios para o aprendizado e o emprego decente. Ao mesmo tempo, inquieta-me a percepção de que isso tem sido graça menos alcançada pelos pobres de Jó num mundo, desgraçadamente, ainda muito injusto e desigual.
Suponho que meu amigo Coló pôde reunir a provável cria para contar da infância, dos banhos em poços do Paraíba, do futebol nos bancos de areia e da vida, apesar dos pesares, mais segura e tranquila. Gosto de pensar que, em algum momento, ele tenha falado de mim e dos outros com os quais também brincava com piões, papagaios, bolas de gude e de meia.
O coração de criança, que agora me bate no peito, torce com todas as forças para que estas lembranças tenham, se necessário, acalentado o velho Coló nos prováveis momentos de aflição. Que, em pensamento, o tenham reconduzido às cheias do Paraíba, às mangas, sapotis e cajaranas daqueles quintais, à terra que o viu nascer, às brincadeiras que perdeu e aos amigos de infância não mais vistos. E, se preciso for, digam os anjos amém.