Conheci o doutor Nereu Santos nas lides forenses. Eu, na qualidade de procurador da UFPB, e ele, na de representante do Ministério Público Federal. Participamos juntos de algumas audiências na Justiça Federal, cada qual no desempenho de suas respectivas missões institucionais. Eu ainda relativamente jovem; ele já na chamada meia-idade, em plena maturidade pessoal e profissional. Mas ainda vigoroso e atuante, mesmo mantendo a serenidade e a fleuma de um verdadeiro cavalheiro inglês, que ele sempre foi, até o fim.
Eu, tímido por natureza, sempre comparecia a essas audiências com um certo temor, uma certa insegurança. Normalmente não me sentia à vontade, como outros colegas mais desinibidos ou mais temerários. Diante do magistrado e do procurador da República, fossem quem fossem, sentia-me um pouco inferiorizado, como se pertencesse a uma hierarquia funcional menor. Às vezes, até o advogado da parte adversa à UFPB conseguia me intimidar, caso fosse muito desenvolto, falante ou aparentemente íntimo das demais autoridades presentes. Vejam só. O que não nos causa e nos impõe nosso temperamento …
Mas quando a audiência era com o juiz federal João Bosco Medeiros e o procurador da República era o doutor Nereu eu me tranquilizava automaticamente, pois a lhaneza e a fina educação de ambos resgatava minha autoestima, colocando-me, como devia ser, na posição devida a um procurador federal, medíocre que fosse, como era certamente o meu caso. E então eu me sentia feliz e feliz desempenhava o meu ofício e as minhas atribuições, nem sempre fáceis.
Como bem sabem os profissionais da área, defender um órgão público em juízo é trabalho árduo, pois na maioria das vezes o direito do órgão ou entidade estatal não é dos melhores, já que temos aqui no Brasil, em todos os níveis, uma triste tradição de desrespeito aos direitos dos cidadãos por parte dos municípios, dos estados e da União. Infelizmente, é um fato. Resultante talvez de nossa história e de nossa cultura, profundamente fundadas no prestígio e no poder incontrastável do Estado, e na consequente desimportância da cidadania. Tudo isso contribuía para que eu mais inibido ficasse, salvo quando ia, como disse, defrontar-me com os fidalgos acima citados, gente da melhor qualidade humana e jurídica, simples, naturalmente simples, sem nenhuma pose, nenhuma arrogância, nenhuma autoridade artificial (aquela decorrente unicamente do cargo e não dos méritos de seu titular).
Aprendi assim a admirar e a querer bem a doutor Nereu. Depois ele ascendeu ao cargo de desembargador federal junto ao TRF da 5ª Região, que chegou a presidir, para justo orgulho dos paraibanos. Naquela Corte, ele honrou outros conterrâneos que dela fizeram e fazem parte, como Ridalvo Costa (paraibano de coração), Alexandre de Luna Freire e Rogério Fialho. Na primeira e na segunda instância, ele sempre foi o mesmo gentleman, com o gabarito moral e intelectual de um ministro do Supremo dos velhos tempos, que poderia perfeitamente ter sido, para o bem do STF e do país.
Aposentado, doutor Nereu elegeu nossa aldeia para a morada definitiva. Teve o privilégio de poder habitar à beira-mar do Cabo Branco, em cuja então tranquila calçada o encontrei várias vezes a caminhar, anonimamente, de tênis, bermudas e camiseta de mangas, sempre composto, senhor de uma dignidade pessoal que independia de quaisquer cargos, que lhe pertencia por natureza, acima e além das eventuais e passageiras ocupações oficiais, tão efêmeras e que, como tais, nunca lhe fizeram falta, tenho certeza. Cumprimentava-o nessas ocasiões de maneira cordial, mas sem indevidas intimidades e sempre respeitando sua privacidade.
Nos últimos tempos, devido à idade, encontrava-se recolhido ao lar, acompanhando a vida e o mundo da maneira que lhe era possível. Principalmente seguindo de perto as inumeráveis e merecidas conquistas literárias de sua esposa e companheira de vida, a doce e talentosa professora e escritora Neide Medeiros, nome que honra a cultura paraibana, nordestina e brasileira.
Então o acompanhei de longe, através das eventuais notícias da professora Neide, sabendo que o tempo ia aos poucos fazendo o seu trabalho inevitável, aquele que faz com todos nós, finitos que somos, desde sempre. Agora recebi, pelo jornal, a notícia de sua partida, aos noventa anos. Lamentei muito, é claro, mas compreendi que sua hora tinha chegado, após uma vida longeva e produtiva – e acima de tudo decente e digna, laurel que poucos podem ostentar, nestes tempos tão corrompidos e vulgares.
Doutor Nereu foi realmente um homem de bem – e do bem. Foi daqueles raros que engrandecem os cargos que exercem, ao invés de serem engrandecidos por eles. Coitados dos que dependem de cargos para se sentirem e serem socialmente importantes. Não era o seu caso. Que mais ele e sua família poderiam desejar nessa vida tão curta, precária e enganosa? Vai-se o nobre cidadão e magistrado, fica o exemplo notável para todos nós.