Nem os mortos têm paz

Duas notícias recentes: roubaram o busto de bronze (45 quilos) que adornava o túmulo de Nelson Rodrigues no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, e os sobrinhos-netos de Jorge Luís Borges querem trazer seus restos mortais de Genebra para Buenos Aires. Os dois fatos mostram o desrespeito de que são vítimas os mortos no Brasil e além. Vejamos.

Comecemos por nosso quintal. Depredação de túmulos, sabemos, é prática já antiga e corriqueira em nosso país. Roubam-se abertamente, sem nenhuma providência por parte das autoridades, todas as peças de bronze (ou outro metal)

K. Pereira (via GMaps)

Cemitério da Boa Sentença, J. Pessoa

das sepulturas brasileiras. O roubo é para se vender o metal, cujo destino é ser derretido para algum fim. Há uma verdadeira indústria nesse ramo, pelo visto destinado à rápida extinção, já que praticamente não há mais o que roubar nos cemitérios. No nosso Senhor da Boa Sentença o cenário é de devastação. E não é de hoje. As pessoas que lá têm os seus falecidos sabem muito bem que o descaso é antigo, não só quanto à segurança do local, mas também quanto à limpeza e conservação. O campo santo virou terra de ninguém. Aliás, virou terra de traficantes e de bandidos em geral. Ali se trafica, mata-se, assalta-se e se estupra livre e impunemente, de dia e de noite, de tal modo que as famílias e os cidadãos de bem foram como que expulsos de uma área que é oficialmente pública, por lei e por natureza.

A solução, que é válida para os demais cemitérios públicos da cidade, é simples e barata: colocar a guarda municipal para vigiar os locais dia e noite, iluminar bem toda a área e manter equipes permanentes de limpeza e manutenção. Bastaria isso para afugentar os meliantes e devolver à população o que a ela pertence. Por que será que os administradores dos cemitérios e as demais autoridades municipais nada fazem a respeito? No mínimo, é uma omissão bastante estranha — e suspeita.

L. Kerli (via GMaps)

Cemitério da Boa Sentença

Os corpos de meus pais estão sepultados no Boa Sentença, falo, portanto, com conhecimento de causa. O túmulo já foi vandalizado repetidas vezes, até que desisti de recuperá-lo, pois estava trabalhando e gastando para os vândalos. Assim como muitos outros, praticamente já não visito os meus queridos, pois tenho medo da bandidagem que se assenhorou do cemitério à vista de todos. Penso em trasladar os seus restos para uma necrópole privada, a um custo financeiro bastante alto. É a inércia estatal beneficiando a empresa privada, numa área em que o Estado não poderia se omitir. Será isso o tal capitalismo selvagem? É bem possível.

O busto de Nelson Rodrigues pesa 45 quilos, é imenso; não poderia jamais ser arrancado e conduzido por uma única pessoa: é trabalho para uma quadrilha de quatro ou cinco. O São João Batista é

Band

Busto de Nelson Rodrigues, furtado do cemitério São João Batista, no Rio.

provavelmente o cemitério mais importante do Rio de Janeiro. É de se supor que dispõe de vigilância adequada e diuturna. Como é que se explica então um roubo desses? Repito: no mínimo é algo muito estranho – e suspeito. Haverá conluio entre os responsáveis e os bandidos? Não sei. Que a polícia investigue, pois existe para isso.

De Buenos Aires, onde aliás o cemitério da Recoleta é ponto turístico muito bem cuidado, soube-se que os sobrinhos-netos do escritor Jorge Luís Borges estão em campanha para trazer seus restos mortais de Genebra, onde estão sepultados. Enquanto viva, a viúva María Kodama sempre foi contra, alegando que Borges deixou claro que gostaria de ficar na bela cidade suíça, com a qual sempre teve muitos vínculos afetivos. Tanto é assim que, sabendo-se mortalmente enfermo, escolheu passar os derradeiros dias e morrer em solo genebrino, quando poderia muito bem – e com todos os cuidados médicos – ter permanecido na capital portenha. Não é um caso simples, pois, ao que parece, o escritor não deixou disposição escrita a respeito e seus parentes estão todos mortos, salvo os tais sobrinhos-netos. Provavelmente a questão será decidida judicialmente, talvez contrariando a suposta vontade do falecido.

É sabida a profunda identidade de Borges com Buenos Aires. Os dois são quase sinônimos, não se pode falar em um sem falar na outra e vice-versa. E no entanto, também se sabe, nem sempre foi fácil esse

Jorge Luís Borges, fotografado por Grete Stern, 1951 ▪ via Wikimedia, PD.

amor entre cidadão e cidade. A política (sempre ela) interferiu muito na relação entre ambos. Borges nunca se entendeu bem com o peronismo e este, seja como for, tem dominado a Argentina há décadas, com os resultados que se conhece. Borges tinha suas mágoas. María Kodama também.

Aqui na aldeia, vez por outra fala-se em trasladar os restos de Augusto dos Anjos de Leopoldina, Minas Gerais, para o solo paraibano, também contra uma suposta vontade sua. Os descendentes do poeta, ao que tudo indica, estão atentos e preferem que o bardo continue repousando onde está, na aprazível cidade mineira, onde teria sido feliz em seus últimos dias, até ser colhido inesperadamente pela fatal enfermidade. Augusto e sua esposa saíram daqui magoados, quase enxotados.

Fico pensando em João Pessoa e em Epitácio, ambos trazidos para a aldeia. Talvez chegue o dia em que queiram trazer Zé Lins. Ou outro notável. Sinceramente, não sei se é certo. Quem sabe, seja melhor deixar os mortos em paz onde estão – e cuidar bem de seus túmulos e dos respectivos cemitérios, lugares sagrados para muitos.

Quanto a nós, brasileiros do Rio, daqui e de todo lugar, que lembremos aos políticos locais que os mortos não votam – mas os vivos sim.

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