Os ventos do sul sopram leve agora. Parecem mais umas brisas. Não conseguem varrer a ferrugem dos meus dias.
Caminho preso aos costumes e ao passado. Grilhões me arrastam nas madrugadas adentro como anzóis rasgando meus tendões. Sigo no labirinto dos dias, sedento de cores e poesia. Sou pestilento a pedir socorro.
Caminho preso aos costumes e ao passado. Grilhões me arrastam nas madrugadas adentro como anzóis rasgando meus tendões. Sigo no labirinto dos dias, sedento de cores e poesia. Sou pestilento a pedir socorro.
Minhas tatuagens estão desbotadas. A pele as tragou no efeito dos dias. Minha pele está erodida pelo tempo. Veios rasgam minha face como desfiladeiros do destino. O tempo me traga, digere e me vomita às vezes. Os dias parecem ritornelos de uma sinfonia que parece não ter fim.
Da janela olho o Sol se indo montanhas a oeste. Depois vem a noite. Uma noite sem estrelas. Filmes, livros, mensagens. Tudo é aziago e infértil.
Escancaro as portas e entram os sons, os dons e as léguas que eu não cumpri. Rumo só sobre minha montanha com meus dias sudorentos. São dias que a beleza se faz póstuma e há poesia falsa n’alma.
E ainda agora acorrentado a meus absurdos quase trágicos, morro a cada dia. Tenho a memória travada pela fúria dos enganos. Tenho lembranças apagadas. Imagens gastas e sons secos e sabores insossos. Meus sentidos quase embotados são levemente disfarçados em algumas manias. Eu que me disfarçava na fantasia de não estar só. Eu que me emaranhava em viver uma vida que não era a minha. Eu que era só adição, sou agora talvez suplemento.
Eu agora me bifurco, pois me vem a noite. Sinto borbulhar meu sangue. Somente desejo queimar a noite e beijar o dia. Sou senhor dos meus medos e esgoto-me em meus segredos. A sensação é de talvez-morte. Como se os segundos fossem notas estridentes de um sino rachado. Como se os minutos fossem cantilenas de carpideiras no funeral das horas. Como se as horas houvessem engolido até a última joia da caixa de Pandora, a esperança.
Como um pêndulo, me arrasto entre o passado e o presente, pois nem há direção para o futuro. O passado me revisita com um demônio que me satisfaz com o tempo dos costumes. O presente me chega como quem se despe ao carrasco à espera da lâmina aguda ao pescoço.
Eu sou um inventário sem destino. Tenho os pulsos corroídos e há teias entre meus cabelos. Amanheço morno como dormi, zombando do oco das minhas veias, do gotejar daquela torneira que sempre vazava e aquela parede esverdeada cheia de infiltrações. Reparo que minha pele descama e que no espelho meus olhos estão opacos.
O que me guarda e abençoa são as palavras. Estas que ponho no papel. Estas que ouso marcar como tatuagem feita a ferro e fogo. Preciso que eu desabe em mim e que grite minhas injúrias, que balbucie notas e que eu sussurre oblações.
A palavra me assassina.
A palavra me ressuscita.
Reviro gavetas em busca de meus talismãs. Acho o predileto e o seguro em mim, cercando meu pescoço e protegendo meu cardíaco. Mas também ele não me dá direção. Escorre em mim como enchente em terra nova. Desbasta meus mirantes com tuas tormentas.
Sem ter a arte das previsões, creio que se avizinha em mim uma inundação. Águas que esborram em mim, nos meus vales e nos meus vazios. Como uma língua feroz, escava minhas margens com a voracidade das enchentes. Que possa ser uma enxurrada que me traga sementes. Que me oferte vida.
Água escorredeira, que me limpe e goteje em mim desejos, cristais e aromas. Água lavadeira, que esculpa em mim formas ribeirinhas, fluviais.
Eu rio. Rebrotado após a lança cortante das podas necessárias.
Só se corta o que estava morto.
Recolorir as tatuagens antigas. Ter a paciência necessária à decantação. Sorver um vinho frutado só com a companhia do copo. Talvez de uma canção.
Sobreviver a mim.