O vinil começou a girar e o blue de George Brooks encheu a casa hoje cedo, enquanto eu, preguiçosamente, aguardava um café quentinho, ...

Itinerários próprios

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O vinil começou a girar e o blue de George Brooks encheu a casa hoje cedo, enquanto eu, preguiçosamente, aguardava um café quentinho, saído da velha Bialetti que eu colocara momentos antes no fogo. Famoso nos anos 20, na interpretação de Bessie Smith, “SEND-ME TO THE ELETRIC CHAIR” chegava na voz vibrante e expressiva de Dinah Washington, paralisando o decorrer das horas e convertendo o cenário mais banal de uma cozinha, num reduto de melancólica “sofrência” e enigmática solidão.


Cortante como um punhal, e de uma expressividade comovente, a voz de Dinah trazia a confissão desesperada de uma mulher que assassinara seu amante traidor. “Mr. Judge, send me to the 'lectric chair”, rogava ela ao juiz. Imersa num turbilhão de emoções e sentimentos contraditórios, admitindo que o amava, ela não suportara tê-lo flagrado com outra. Enlouquecera com a faca na mão e lhe cortara friamente a garganta:

I just cut my good man's throat, I caught him with a trifling Jane, I warned him once before I had my knife and I went insane, and the rest you ought to know.

Confessa que depois de cometido o crime, sai de cena, batendo palmas enquanto ele morria. Não, não pede ao juiz simpatia e se recusa a pagamento de fiança; somente reitera seu dramático e vigoroso apelo: “Juiz, juiz, por favor Senhor Juiz, mande-me para a cadeira elétrica”.

Já com o café na xícara e sentada à mesa, parei o vinil e passei a ouvir no Spotify “EU TE PEGUEI NO FRAGRA”, de Genival Joaquim dos Santos e Lindolfo Mendes Barbosa. Diferentemente do blue de George Brooks, escorre daquela
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Genival Joaquim dos Santos
@canalsosaudade
sonoridade simples, sem qualquer elaboração mais sofisticada, um lamento magoado, impõe-se o sofrimento de um homem destroçado, toda a dor de um amante apaixonado, surpreendido pelo flagrante de um beijo. Claro, como não tem o que explicar, ele não quer explicação. Diz-se magoado, “de mal”. E, cuidadoso para não ferir a amada, acusa-a somente de não ter coração, confessando sua impotência, sua incapacidade para lhe conceder o perdão... Não tem cara para isso... “Eu te peguei no Flagra/ E não quero explicação/ Você beijando um cara/ Com que cara eu vou lhe dar o meu perdão/ Não você não tem coração”. Vontade de perdoar talvez não lhe falte, penso... mas não o faz por temor dos outros. Receia pelo que possam pensar dele. Os outros... esse inferno, no dizer de Sartre.

Levada pela imaginação, fui à tragédia de Eurípedes, protagonizada por Medéia. Traída pelo marido Jasão, que se encantara pela filha de Creonte, ela mata os filhos que tivera com ele, reconhecendo, tomada pela fúria, que sua ira era maior do que seu raciocínio.

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Farzad Mohamadi
Coloquei mais um pouco de café quente na xícara e, entre goles lentos, pensei, devagar: cada pessoa viva, concreta, singular, é um enigma inultrapassável e a verdade é que as relações, mesmo as mais amorosas, são sempre solidões compartilhadas... sim, é claro que amamos as seguranças e certezas, mas no rio da vida tudo flui...

Deixei Medéia pra lá, trouxe a alva rodela de inhame para o meu prato e permaneci à mesa, imaginando, entre goles lentos do café fumegante, o que seria o amor nesse contexto, com as suas Sem-Razões poetizadas por Drummond... Como são diversas, distintas, variadas as decisões e os gestos que as realizam, especialmente sob a dor do abandono, a violência da traição, o desmoronamento do mundo no confronto com o flagrante, a iminência do fim, a ameaça da ruptura, a certeza da separação...

Volto ao Spotify, procurando o bahiano Tierry. Se nome é destino, augúrio, vaticínio, prenúncio, profecia,
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Tierry de Araújo Paixão
@metropolitanafm
como diz antiga crença, Tierry carrega a paixão até no nome, ali sua passionalidade já se encontra, já está inscrita: é Tierry de Araújo PAIXÃO, que já compôs grandes sucessos para a voz de Claudia Leite e de Ivete Sangalo. Em RITA, Tierry Paixão canta um homem alquebrado, em farrapos pela ausência da mulher amada, desolado pela fossa, completamente vencido pela paixão:

“Sua ausência tá fazendo mais estrago que a sua traição”. Sentindo o perfume dela impregnado no quarto escuro em que se encontra, transtornado pela saudade, implora a volta da amada e grita que desculpa tudo, tudo mesmo, inclusive... a facada que levou.

Ôh, Rita, volta, desgramada Volta, Rita, que eu perdoo a facada Ôh, Rita, não me deixa Volta, Rita, que eu retiro a queixa Ôh, Rita, volta, desgramada Volta, Rita, que eu perdoo a facada

Terminei meu café da manhã e deixei a mesa pensativa... Forças antagônicas se confrontam no interior de nós mesmos, no íntimo desse corpo que somos, e nem sempre está em nosso poder combater a intensidade dessas forças conflitantes, desses diferentes desejos, dessas pulsões arrebatadoras... julgamentos morais são insuficientes, quase sempre impiedosos, maléficos, cruéis, traiçoeiros. Nessa confusa diversidade de itinerários, cheguei ao jardim. Regando as plantas, com o suave esplendor do sol a me congratular, inquietei-me com a certeza dessa vida velada, muda, clandestina, declaradamente imprevisível, indecifrável, na qual estamos perigosamente lançados.


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  1. Nevita Franca7/1/24 16:37

    Caro Gil, ter como leitor um intelectual da sua estatura me alegra, me estimula, me anima. Obrigada pelo seu comentário! Um afetuoso e fraternal abraço!

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