No final de semana passado, entre os dias 19 e 21 de janeiro, Alcione e eu deixamos a vida reclusa nas paredes austeras do vetusto Seminário Maior da Sagrada Família de Coimbra, e entregamo-nos a uma flânerie por Lisboa. Deixemos claro que foi uma entrega comedida que nem cedeu, nem pairou “acima dos mundanos tectos”, no dizer do poeta do Eu. Aproveitando os belíssimos dias de sol, encontramos amigos e visitamos o que foi possível visitar, numa cidade de tantos encantos. Eu, particularmente, pude reviver o meu último encontro com Lisboa, há 23 anos. Posso afirmar que a “velha cidade” está, ainda mais, “cheia de encanto e beleza”, como apregoa a famosa canção.
Hospedamo-nos no Campo Pequeno, de frente para uma Plaza de Toros, ora desativada, em cujo subsolo funciona um shopping center. Hotel muito bem localizado, numa região de muitos restaurantes, supermercados, livrarias e com excelente mobilidade para qualquer lugar, pois a estação do Metro Campo Pequeno (em Portugal, não se diz Metrô) ficava a dois passos.
Fomos ao Chiado. Sempre um charme. Ir a Lisboa e não ir ao Chiado é como ir a Roma e não visitar o Coliseu. A estação Baixa-Chiado nos faz sair em cima da estátua de Fernando Pessoa, ponto de peregrinação e de beija-mão, em frente ao famoso café A Brasileira. A estação construída no Largo do Chiado divide, simetricamente, o aclive que dá acesso ao seu ponto principal, tendo como pontos importantes as estátuas de dois poetas maiores. Pendendo para o lado da Baixa e do Rossio, está Fernando Pessoa; subindo na direção oposta, vemo-nos na Praça LVIZ DE CAMÕES, com a enorme estátua do poeta, sempre vista à distância, mas atualmente, por conta da insensibilidade da administração pública, encoberta por uma espécie de cúpula luminosa e brega, tendo à frente o nome da cidade, para que os turistas possam fazer seus selfs e dizer que estiveram em Lisboa... e não a viram.
Estátua de Fernando Pessoa / Café A Brasileira (Pça Luiz de Camões) Milton Marques
A estátua de Camões não é só um monumento, no sentido material da palavra, da pedra e do bronze que vão desafiar o tempo e a falta de cuidado. É um monumento à história de Portugal, à Língua Portuguesa e ao seu aprimoramento, pelo poeta, que nos brinda, a partir de Os Lusíadas, com o português moderno. A intenção monumental fica bem clara, quando observamos que, aos pés do poeta, formando um círculo, encontram-se as estátuas de 8 grandes nomes de Portugal, alguns anteriores (Fernão Lopes, 1418-1459, cronista e escrivão, guardador da Torre do Tombo; Gomes Eanes de Azurara, 1410-1474, cronista, guarda-conservador da Livraria Real e Guarda-mor da Torre do Tombo, sucedendo Fernão Lopes; Fernão Lopes de Castanheda, 1500-1559, historiador); outros contemporâneos (João de Barros, 1496-1570, historiador e primeiro gramático da língua portuguesa; Pedro Nunes, matemático e cosmógrafo, inventor do Nônio, instrumento que permite fazer cálculos milimétricos (1502-1578), cuja denominação é oriunda da latinização de seu nome Petrus Nonius; Vasco Mousinho de Quevedo, 1560/70-1620/30, poeta, contemporâneo de Camões, autor de Afonso Africano, primeiro épico depois de Os Lusíadas; Jerônimo Corte-Real, 1533-1588, poeta épico, com uma obra também dedicada a D. Sebastião, sobre os sucessos no cerco de Diu, mas circulando manuscrita bem antes de Os Lusíadas), e um outro posterior ao grande poeta (Francisco de Sá de Meneses, 1600-1664, poeta de influência camoniana, autor do épico Málaca conquistada, em 1640).
Como podemos constatar, trata-se de uma síntese da formação de uma base histórica, linguística e astronômica; da vivência poética e da expansão do valor de Camões, um gigante sobre os ombros de gigantes.
Lisboa não é Lisboa sem Camões ou Fernando Pessoa que, além de ter nascido no Chiado, ali se batizou na Basílica de Nossa Senhora dos Mártires, na Rua Garrett, compondo com o Largo do Chiado e com a Praça Luiz de Camões, o principal itinerário do flâneur por aquelas paragens. Lisboa não é Lisboa sem outro grande nome, o poeta António Ribeiro Chiado, contemporâneo de Camões, que recebe o cognome da rua em que morava e que hoje denomina o bairro, e cuja estátua captou bem o perfil mordaz e satírico que fez a sua fama; sem a Livraria Sá da Costa, funcionando há mais de cem anos, ou sem a Livraria Bertrand, a mais antiga do mundo em funcionamento, vendendo livros desde 1732, na confluência da Rua Garrett com a Anchieta, com as suas várias salas batizadas com o nome dos grandes escritores de Portugal.
Basílica N. Sra. dos Mártires / Estátua de A. Ribeiro Chiado /Livrarias Bertrand e Sá da Costa Milton Marques
Dali descemos para o Rossio, passamos na Praça D. Pedro IV, o nosso D. Pedro I, que abdica ao trono no Brasil, em 1831, para voltar a Portugal e dar uma surra no irmão Miguel, que quer tomar o poder das mãos da sobrinha, Maria da Glória. Pedro não só põe cobro à pretensão do irmão, como assume o trono com o título de D. Pedro IV.
Após o almoço, continuamos a nossa jornada, em direção ao Mosteiro dos Jerônimos, Padrão dos Descobrimentos e Torre de Belém. Estes dois últimos lugares, marcam a partida, “da Ocidental praia Lusitana”, dos “Barões assinalados”, para a grande aventura “por mares nunca dantes navegados”. Como fazia muito tempo que eu visitara tais espaços, ainda estava na memória a dificuldade de transporte para lá. No entanto, buscando as melhores informações, vi que a situação mudara, mas os roteiros apresentados eram muito verbosos e pouco práticos. Ainda assim, consegui sintetizar o melhor caminho. Peço vênia aos meus leitores para uma pequena pausa informativa, de utilidade pública.
Esqueça, leitor, todas as narrativas, que se podem encontrar na internet, sobre como chegar à Torre de Belém. Vamos simplificar o caminho. A primeira medida a tomar é comprar um bilhete do Metro, para 24 horas, ao custo de 6,80 Euros. Pode crer, vale a pena. Esclareço que o bilhete não é para o dia, mas para um dia, ele pode, portanto, passar de um dia para o outro, pelo fato de poder ser utilizado no espaço de 24 horas. Atenção, no entanto, ao comprar o bilhete para duas ou mais pessoas, pois cada um deles deverá ser comprado em separado. Se, para adiantar o serviço, alguém comprar, um bilhete para três, a máquina entenderá que foi comprado um bilhete para três dias, não três bilhetes para três pessoas. Este bilhete dará acesso não só ao metrô, mas também aos autocarros e aos eléctricos, como se chamam, respectivamente, os ônibus e os bondes. Sem os eléctricos, Lisboa não é Lisboa.
Não importa onde você esteja, depois de tomar o Metro, procure ir em direção à estação Cais do Sodré, uma das cabeças da Linha Verde (a outra é Telheiras). Em chegando ao Cais do Sodré, atravesse a linha férrea, pela passagem de pedestre, óbvio, e vá para o cais à sua frente. Espere, então, pela chegada do eléctrico 15E, que transita da Praça da Figueira a Algés e vice-versa. No cais em que você se encontra só transita o que vai na direção de Algés. Ao entrar, valide o seu ticket 24 horas, na máquina do interior do veículo. São 13 paradas ou paragens, como chama o português, até o Mosteiro dos Jerônimos. Se não quiser visitar o mosteiro, siga em frente, em direção ao Padrão dos Descobrimentos e dali siga à direita, buscando a Torre de Belém. Para retornar, é só fazer o inverso, pegando o eléctrico que vai em direção ao Cais do Sodré, sempre utilizando o mesmo bilhete. Fácil, não?
Voltemos ao nosso passeio. No parágrafo anterior, aventei a possibilidade de o turista não querer visitar o Mosteiro dos Jerônimos, afinal o preço do ingresso é 12 Euros. Ainda assim, é uma visita que vale a pena, apesar de rápida, considerando que o turista não é um especialista em arquitetura de estilo manuelino. Mandado ser construído no final do século XV, pelo rei D. Manuel, o Venturoso, o dos descobrimentos, inclusive o do Brasil, o monumento que já se chamou Mosteiro de Santa Maria de Belém, teve sua construção iniciada em 1502 e foi destinado à ordem religiosa que dá nome ao mosteiro, devendo abrigar 100 monges, sob o patronato de São Jerônimo, doutor da Igreja, Cardeal e tradutor da Bíblia, entre os séculos IV e V, a edição conhecida como Vulgata.
Mosteiro dos Jerônimos (Claustro e Fachada) Milton Marques
De uma arquitetura esplendorosa, o mosteiro tem um claustro de grande beleza, e abriga os túmulos de dois grandes escritores da nossa língua: Fernando Pessoa, que teve os seus restos mortais trasladados para o recinto, no cinquentenário de sua morte, em 1985. O outro, situado na Sala do Capítulo, é o imenso Alexandre Herculano, a maior expressão do Romantismo português: romancista, contista, cronista, poeta, teatrólogo, jornalista e historiador.
Um detalhe a que poucos se referem. Ao lado do mosteiro se encontra a Igreja de Santa Maria de Belém, cuja entrada é gratuita. Ali estão os túmulos de Vasco da Gama e Luís Vaz de Camões. Estão um ao lado do outro, divididos pela nave central da igreja, colocados em posição diferente, no sentido de a cabeça de um combinar com os pés do outro. O grande navegador dos mares e expansionista do império português, ao lado do grande navegador da língua e promotor da sua expansão para uma forma mais lusitana. Dois monumentos da história de Portugal e, sem dúvida, de nossa história.
Túmulo de Alexandre Herculano / Igreja de Sta. Mª de Belém / Túmulo de Fernando Pessoa (Mosteiro dos Jerônimos) Milton Marques
O mosteiro, assim como a torre, se situa na freguesia de Belém, que inclui na sua geografia o bairro do Restelo. O poeta e o navegador não poderiam estar em lugar melhor. É no final do Canto IV de Os Lusíadas, que Camões mostra a aparição do Velho do Restelo, fazendo as recriminações que todos conhecemos à empreitada de Vasco da Gama: a glória de mandar, se juntando à vã cobiça, em busca da vaidade, que se chama Fama, fraudulento gosto que atiça a honra e faz o homem perder-se, em descaminhos obscuros, que continuam a ser reproduzidos, não obstante terem-se passado 452 anos...
No silêncio da igreja, em meio à penumbra que começa a encobri-la, neste dia curto de inverno, parece-me ouvir o poeta a convidar o almirante, como fez em sua obra, para narrar as histórias que, tendo agora outro público, que não o rei de Melinde, fizeram grande um pequeno povo, mas que “um fraco rei fez fraca a forte gente”. Ecoa pelas altas paredes da igreja, agora sem o mesmo entusiasmo com que se começa o Canto III de Os Lusíadas:
Agora, tu, Calíope, me ensina,
O que contou ao Rei o ilustre Gama.