Havia o cabide e nele, quais morcegos, as roupas esfarrapadas dependuradas. O relógio marcava o embranquecer da vida em cabeleiras mal...

Ficou o cabide

nostalgia cronica recordacoes
Havia o cabide e nele, quais morcegos, as roupas esfarrapadas dependuradas. O relógio marcava o embranquecer da vida em cabeleiras mal penteadas do casal que perambulava, sem ter o que fazer, pelos recantos da moradia pobre. Casaram-se todos os moleques que tiveram, levaram suas vidas para terras distantes, deixando uma vacuidade. Somente um rádio de pilhas tocava: cantigas de viola, nas tardes que se iam amolecendo até tudo puxar uma escuridão que estendia seu corpo pelo pequeno sítio onde habitavam.

nostalgia cronica recordacoes
MS_Art
Uma frieza se metia entre as frestas, a mulher ligava a novela para se encontrar com as estrelas e trafegar entre os cenários resplandecentes de ilusão. A casa que sonhara, um dia, muitas vezes, quando pensava acordada num ricaço que lhe conduzisse ao altar. Quem chegou primeiro foi o velho que estava deitado, agora, na rede esticada, roncando, a sonhar futuros jamais alcançáveis. À época, era abastado, bem vestido, representante de drogas, viajante num fordeco novo. Muito diferente daquele que dormia.

A mulherzinha diminuta se entorpecia, numa fuga que esbarrava no final de cada capítulo quando acordava e passava a olhar o cabide. Não sabia explicar por que aquele móvel onde se aninhavam quietos andrajos, roupas que nem usavam mais, lhe atraía o olhar mastigado, sombrio, de pouca lente. Ninguém poderia penetrar naquela fixação. O cabide antigo que lhe dera sua mãe era pomposo, em forma de serpente enroscada, talhado por um desconhecido artífice. Bonito exemplar de marcenaria. Talvez a maior riqueza que possuíssem. O restante do mobiliário todo comprometido pela invasão da umidade, alguns rasgados pela ação dos cupins, outros com as portas pendidas.

nostalgia cronica recordacoes
MS_Art
E as roupas tinham uma história emocionante. Eram, há muito, intocadas. Permaneciam na posição da saudade e recordações dos tempos em que as usavam, ternos e vestidos, em festas, acontecimentos sociais, a homenagem prestada pela Câmara de Vereadores ao seu marido, reuniões do clube.

O cabide fixava um santo orgulho, um ícone dos tempos gordos, quando eram tidos pela sociedade da cidade como merecedores de apreço e comendas. Ele gerenciando uma famosa drogaria, ela cuidando dos filhos e prestando seus serviços de enfermagem no posto de saúde, ambos amealhando um respeitável dinheiro. Assim, residindo num belo bangalô, em pleno centro, recebiam as reverências das autoridades, das famílias consideradas, dentro dos padrões, da alta sociedade.

Saíam, vez por outra, na coluna social do jornaleco quinzenal que circulava pelas cercanias. O cabide era um símbolo que eternizava os bons tempos. As vestimentas ficaram ali: lembranças de um passado naufragado por ondas difíceis de serem explicadas. Apenas os olhos mortiços da mulher a contemplar as vestes penduradas quais morcegos no cabide parado num canto sombrio da sala. Uma consolação.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também