Uma justiça injusta que, antes de dar início aos ritos processuais, já decidiu pela condenação, não importando a argumentação da defesa, ignorando provas e engrolando uma sentença com juridiquês e latinório suficientes, para confundir e embair o público, tendo em um dos seus maiores representantes alguém que se expressa sempre com voz macia e educada, encobrindo a malignidade que o habita.
Um líder do executivo, que vive sob chantagens e bajulações de seus servidores mais próximos, sem poder fazer coisa alguma, por estar de mãos atadas, e sem querer, por ser de sua natureza absolutista, mesmo quando resolve investigar e descobre as falcatruas, desvios de verbas, superfaturamento das construções e o inchaço do número de servidores, muitos inúteis, agarrados a penduricalhos que sangram, sem piedade o erário.
Ministros, políticos e demais acólitos que nunca estão satisfeitos com o que conseguem abocanhar, querendo sempre mais e mais, nas suas investidas solertes e cínicas contra o poder constituído. Uma malandragem e uma bandidagem organizadas se pondo na rua e desafiando abertamente um poder que não pode, por ser reconhecidamente fraco, leniente, complacente e corrupto.
Uma cobrança desmedida de impostos, sufocando o povo já em estado desesperador, cujo dinheiro será revertido em gastança com as inutilidades que parecem úteis, mas só parecem, pois não há investimentos estruturais no Estado.
Eis o retrato impiedoso de uma sociedade que se sabe apodrecida, mas que procura se vender a si própria com a imagem de que em seu seio a justiça e a preocupação com o bem comum ocupam o ponto mais alto.
Amigos leitores, eu vos peço calma. Não penseis mal deste escriba que vos fala. Não façais ilações erradas e não tireis conclusões apressadas e errôneas. O que escrevo, à maneira de um prólogo são referências ao romance Notre-Dame de Paris (Oeuvres complètes, Roman I, Paris, Robert Laffont, 2002), de Victor Hugo, mais especificamente, ao Livro X, Capítulo 5, Le retrait où dit ses heures Monsieur Louis de France.
Vamos aos fatos.
A cigana Esmeralda é acusada da morte do capitão Phoebus de Châteaupers, que fora apunhalado pelo arquidiácono D. Claude Frollo, o vigário de Notre-Dame, e sobrevivera ao ataque. O fato de o capitão dos arqueiros do rei ter sobrevivido à tentativa de assassinato do enciumado religioso não é relevante para a justiça, que condena uma mulher, cigana, pobre, de um crime abominável contra um militar graduado. À acusação, segue-se a condenação, após uma prisão em condições miseráveis e uma sessão de tortura, obrigando Esmeralda, na realidade ainda uma criança, com uma idade em torno de 16 anos, a confessar um duplo crime que não cometera: não fora ela a agressora; o capitão não morrera. E de nada lhe vale dizer que a agressão e quase morte do capitão partira das mãos de D. Frollo, pois a justiça constituída não acreditará na palavra de uma desclassificada, tida como feiticeira, “une misérable fille du ruisseau” (“uma miserável filha da sarjeta”, Livro VII, Cap. 8, p. 709), contra um homem cuja honra – como a de todo canalha –, está acima de qualquer suspeita.
Quem conduz o processo é o mestre inquisidor, Jacques Charmolue, cônscio e convicto de que está não só fazendo justiça, mas fazendo um bem àquela alma perdida pelo diabo, no caso Esmeralda. Charmolue jamais abandona o sorriso muito bondoso (un sourire très-doux, Livro VIII, Cap. 2, p. 718), a voz afável (la voix caressante, p. 719) e a imperturbável benignidade (imperturbable bénignité, p. 720), ainda que acompanhado de Pierrat Torterue, o torturador.
Por sua vez, Victor Hugo não abandona a ironia com a preocupação dos juízes que vão julgar o processo, tratando o final do julgamento, após a confissão por tortura, de “último entreato da comédia” (dernier entr'acte de la comédie), que sinaliza ao egrégio corpo de paramentados, noblesse oblige, juízes “a esperança de tomar, mais cedo, a sua sopa” (c'était l'espoir de bientôt souper, Livro VIII, Cap. 3, p. 721).
O resultado do julgamento não é outro, senão a sentença proferida em bassa latinitas (p. 722), como diz o poeta Pierre Gringoire presente ao tribunal, de morte por enforcamento. Não bastam à condenada a humilhação e a morte. A injustiça deve se fazer explícita, como se revela nas palavras de D. Frollo – “Quando se faz o mal, é preciso fazer todo o mal. É loucura, no monstruoso, parar na metade” (p. 730). E Victor Hugo não perdoa, tratando os fatos com a ironia, que tudo revela e é malquista pelos que compactuam e só veem beleza no que realizam os donos do poder. Esmeralda é jogada numa cafua, um dos muitos buracos esquecidos nas masmorras de la Tournelle, “condenada à forca, com o colossal Palácio de Justiça sobre a cabeça” (condamnée au gibet, avec le colossal Palais de Justiça sur la tête, p. 724). Não é à toa que este Capítulo IV do Livro VIII se chama Lasciate ogni speranza... Nem Dante teria previsto suplício maior a inocentes punidos pelo inferno produzido por uma justiça que não é só cega, mas surda e muda.
Uma importante parte do cenário da justiça injusta é o perfil que Victor Hugo compõe de Luís XI, rei de França, com que ele abre o capítulo V do Livro X – Le retrait où dit ses heures Monsieur Louis de France (O retiro em que o Senhor Luís de França diz suas horas, p. 803-825).
Estando em Paris, o rei de França prefere o quartinho e o colchonete da Bastilha ao grande e suntuoso quarto que tem no Louvre. O título do capítulo remete ao que seria um momento privado do rei. Momento de recolhimento e devoção, lendo o seu livro litúrgico das Horas. Ironicamente, no entanto, é quando, em seu cubículo, o rei passa a ouvir o memorial das despesas do reino e diz as suas horas, no sentido de seu descontentamento e espanto, com o relatório de gastos do orçamento do reino. Luís XI, que havia cortado benefícios dos nobres e, portanto, fizera muitos inimigos, acha um absurdo tamanhas despesas, principalmente com os que trabalham para ele, muito em funções inúteis, cujos salários são uma pilhagem ao erário francês (p. 806):
“Je ne vois autour de moi que gens qui s’engraissent de ma maigreur! Vous me sucez des écus par tous les pores!”
"Eu não vejo ao meu redor senão pessoas que engordam com a minha magrém! Vocês me sugam dinheiro por todos os poros!"
Dentre os gastos elencados, com roupas, paramentos e outras futilidades, chama mais ainda a atenção do rei a reforma de uma cela, movendo-o a ir pessoalmente inspecioná-la. A sua conclusão é de que houve gastos além do necessário, um superfaturamento, digamos na linguagem de hoje, e ele ordena ao seu secretário de refazer os cálculos: diante da visão chinfrim, Luís XI constata que o que ali se gastou foi equivalente a “enterrar milhares para desenterrar um centavo” (Enterrer un écu pour déterrer un sou!, p. 807). A cela é, em todos os sentidos, um ultraje.
Mas não fica por aí. As ameaças veladas dos ministros e as intrigas entre eles, para ver quem mais tem ascendência sobre o rei, obrigam-no a compactuar com o orçamento e a distribuir honrarias e cargos, de modo a satisfazer a ganância de cada um deles. O rei tem consciência do mal que está fazendo, mas também está convicto de que, sem a concessão de benesses e a anuência, com o dinheiro dos impostos, à prodigalidade dos rapaces que o rodeiam, ele não terá aliados que o mantenham no cargo. A velhice e a doença, que o matariam no ano seguinte, 1483, não o incomodam tanto, quanto o medo de que a sua bastilha pessoal desabe.
Trezentos anos depois da cena em questão, a Bastilha desabará. As razões por que isso acontecerá estão nessa visita de Luís XI e na constatação de que o reino se esvai em gastanças, compadrios e ambições pessoais. Do fundo de uma das celas, um prisioneiro, frágil, doente, encurvado pela idade, de voz quase inaudível e, ele mesmo, quase imperceptível, insta a clemência do rei... Diante de um prisioneiro sem dentes, à beira da sepultura (“nous sommes déjà tout prêt pour la porte du sépulcre”, p. 809), e do tanto que se dispensou na construção de uma sórdida cela, o rei só tem a constatar que se gastou um monte de ferro para aprisionar um tão leve espírito – Voilà bien du fer, dit le roi, pour contenir la légèreté d’un esprit! (p. 809). É o prenúncio da queda. Victor Hugo sabia. Ela passaria por isto, 20 anos depois da publicação de Notre-Dame de Paris (1832), entre 1852 e 1870, com a arbitrária ascensão de Napoleão III ao poder.
Não importa a quantidade de anos, não importa a força dos ferros, não importa a carranca da violência, não importa a indiferença com os desvalidos, um dia os espíritos leves far-se-ão superiores à prepotência e à injustiça. É quando as bastilhas desabam.