Gosto de árvores. Simplesmente gosto de árvores. Seja pelo que elas nos proporcionam, seja pela sua beleza tout court. Fui menino, nascido e criado, entre os jambeiros da Avenida Coremas e as mangueiras da Avenida João Machado, no meu Jaguaribe. Morava na Coremas, a duas casas da Rua Alberto de Brito, e nasci na maternidade Cândida Vargas, maternidade da LBA, na confluência com a João Machado, onde minha mãe, D. Zezé, filha de uma parteira, trabalhava como parteira diplomada.
A Coremas, longa avenida com mais de um quilômetro de extensão, começando na Praça da Independência e terminando na Rua Senador João Lira, é totalmente dividida por jambeiros. Era uma bênção poder contar com a sombra, que essa árvore de copa cônica nos proporcionava. Árvore robusta, com troncos de bom diâmetro, folhas bonitas, muito verdes, lustrosas e um pouco aciduladas. O seu fruto não é bonito quando nasce ou quando está verde. Torna-se, no entanto, de uma beleza excepcional que, a depender do amadurecimento, toma uma cor, cujas nuances vão do rosa ao roxo, passando pelo vermelho. O roxo, a famosa cor de jambo, emprestada do seu nome, é a cor que o fruto assume quando está mais maduro e mais saboroso, suculento e doce. Eu amava os pequenos jambos a que chamávamos de pepitas ou de carrapetas, espécie de jambo temporão, que amadureciam antes de crescer.
João Pessoa da minha infância era pequena e com poucos automóveis particulares, ao ponto de sabermos nomear a quem pertenciam os carros da rua e dos arredores. Essa quase ausência de trânsito nos dava a tranquilidade para ficar em baixo dos jambeiros, atirando pedras e paus, ou apanhando os jambos que os maiores nos jogavam lá de cima, ou que faziam cair, balançando a galha cheia dos frutos maduros. Nunca me arrisquei a subir. Era mesmo frequente a “pelada” – o jogo de bola na rua –, as brincadeiras de “peia quente”, de “barra-bandeira” e “garrafão”, tal a tranquilidade, em relação ao tráfego automobilístico. Hoje, impossível para os meninos que sequer podem sair de casa sem o acompanhamento de uma pessoa adulta.
O fato de existir um tráfego minguado, em meu tempo de menino, não impediu que eu fosse atropelado. Nada de sério, a não ser algumas escoriações, devido ao fato de que os automóveis da época, além de velhos, circulavam com uma velocidade bem menor do que os de hoje.
O que mais me encantava, em meio a tanto alumbramento, era o belo tapete vermelho, como um longo manto cardinalício púrpura, se espraiando pelos dois lados da rua, provenientes dos “cílios” das carrapetas, que se soltavam. Era o jambo-menino perdendo a sua cabeleira, no processo de amadurecimento, e tornando a nossa rua mais bela e mais cheirosa. Talvez, pelo fato de que a poluição fosse menor, era possível sentir o que gosto de chamar “cheiro de setembro”, na época da floração. Há muito que não consigo mais sentir esse cheiro primaveril, que me lembrava da proximidade do verão e das férias de fim de ano, cheias de jambo, cajus e mangas. As mangas cheirosas da Avenida João Machado, as mangas espadas explodindo na simplicidade de seu verde-amarelo, como se gritassem a brasilidade, em lugar de sua origem no sudeste asiático, como atesta o seu nome científico Mangifera indica.
Morei na Coremas de 1960 a 1969, tendo de lá saído aos 12 anos de idade, quando nos mudamos, e fomos morar em casa própria, na Rua Primeiro de Maio, reformada pelos meus pais, de modo a agrupar a numerosa família. Casa em que havia muitas árvores e plantas, devido ao tamanho do seu terreno: coqueiros, abacateiro, goiabeira, bananeiras, pés de maracujá que, igualmente aos mamoeiros, nasciam facilmente das sementes jogadas no quintal, preferencialmente ao pé do muro. Tão diferente da casa da Coremas, que só tinha um mirrado pé de acácia no jardim, mas compensada pelos incontáveis jambeiros da rua.
Na casa nova, não tinha jambeiro ou mangueira, como as espadas da João Machado, ou a mangueira copada de manga rosari ou rosali, em frente à Maternidade Cândida Vargas, dando boa sombra a um fiteiro e aos carros de praça, quando ainda não eram chamados de táxi. Árvore virgiliana que chamaria a quem quisesse e se dispusesse, para ficar lentus, sub tegmine mangiferae, jiboiando embaixo da mangueira (tradução libérrima!), se o poeta latino fosse paraibano. Tínhamos, no entanto, bem perto, a Mata do Buraquinho, com a sua grande diversidade de espécies, bastando atravessar o campo da Vila dos Motoristas, de que a minha casa, em frente à Escola Industrial, hoje IEF, distava apenas um modesto quarteirão.
Gosto das árvores, seja árvore frutífera ou não. Tanto que me deixei seduzir pela beleza incomparável do cedro. De uma espécie de cedro, para ser mais exato. Já havia me deparado com um belíssimo espécimen de Cedro do Líbano, na Villa Borghese, em Roma, de uma fronde incomparável, contando com mais de duzentos anos.
Aqui em Coimbra, sendo vizinho do Jardim Botânico, obra do século XVIII (1772), incluída nas reformas universitárias do Marquês de Pombal, agrada-me atravessá-lo, no percurso para a Baixa ou para a Universidade. Foi, à primeira vista, que me seduziu, para o resto da vida, o Cedro dos Himalaias, assim mesmo no plural, tendo em vista que ele nasce ao longo de toda a cordilheira — do Paquistão ao Butão, alguns provenientes também do Afeganistão. Vê-lo e amá-lo, foi obra de um instante, como diz Machado.
Cedros dos Himalaias, no Jardim Botânico de Coimbra ▪ Imagens: Milton Marques Jr
Também conhecido pelo seu nome científico (Cedrus deodara), o Cedro deodara tem sua sugestiva designação, oriunda do sânscrito, significando “madeira de Deus”. Não poderia ter nome mais apropriado. A madeira, além das qualidades intrínsecas às da família das pinaceae e de nascer nas alturas astrais, compõe uma árvore de uma rara beleza. Cônica como o seu primo, o pinheiro, ela tem uma característica que a diferencia: os seus galhos muito espaçados, longos, parecem braços abertos e acolhedores, principalmente no inverno, quando mantém as suas folhas e sua beleza, por ser uma das árvores sempervirentes, sempre verdes. É das árvores mais harmônicas e simétricas que conheço.Cedro dos Himalaias, no Seminário Maior de Coimbra ▪ Imagens: Milton Marques Jr / Alcione Albertim
Na minha paixão pelas árvores, não poderia deixar de associar, ainda que seja uma livre-associação, a beleza do Cedro dos Himalaias, com o belíssimo soneto de Augusto dos Anjos, “A Árvore da Serra”:— As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!
— Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma!..
— Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!
Na colina em que me encontro, onde foi erigido o Seminário Maior da Sagrada Família, em Coimbra, tenho à disposição da minha admiração diária, o Cedro dos Himalaias, que existe, à sua entrada, e os do Jardim Botânico, sobretudo o mais belo de todos, aquele que recebeu como patrono o poeta Rui Costa, morto prematuramente aos 39 anos (1972-2012). Nem o espaço tropical do Jardim Botânico, onde até bananeiras há, atraiu tanto a minha atenção. Decididamente, “esta árvore possui minh'alma”.