“Aprendera a tempos que dele se podia esperar qualquer coisa, e, ato contínuo, essa simples sentença que acabo de escrever, me faz, muito curiosamente, lembrar de outra noite, tempos atrás – e já atrapalhando completamente meu vago roteiro, anteriormente traçado – quando Carlos há muito se tinha ido, e já se faziam os anos sem que desse qualquer notícia.”
“Naquela noite aconteceu de me surgir o que chamo uma mistura de brincadeira e fantasmagoria. Me veio, acho, dos escafandros da mente, pois por aqueles tempos, iniciara-me já nesse hábito – pernicioso? – de gastar sinapses e mais sinapses em experimentos imagéticos de toda ordem, num vício inventivo de situações, de enredos sinuosos, e que inevitavelmente me ocorreriam, mal começasse eu a reviver na memória parte daquelas emoções infantis, às quais, e por incontáveis vezes na infância, as histórias de Carlos tinham tido esse poder de me remeter.”
“Ouvi-las, então, à época, tornara-se para mim, e, acredito, para o restante dos amigos, um modo mais ou menos seguro de imersão na enxurrada de tensões que nos proporcionavam, sobretudo porque, ali, nos sentíamos protegidos de maior consequência dolorosa – livres de possíveis castigos. O medo, antes de mais nada, é um recurso herdado da História, e suas primeiras manifestações na vida assustam bastante, caso das crianças. Aquelas narrativas certamente nos ajudaram a lidar com ele. As histórias chegavam repletas de vozes cavernosas, heróis destemidos e implacáveis, e para nós, funcionavam como drágeas anti-medo.”
“Eu, particularmente, saía delas cheio de coragem, e, ao voltar para casa, conversava com meus irmãos, e em voz alta repercutia aquelas aventuras, momentos antes de dormir, nas sombras do quarto. Naquele dia distante, porém, eu, Axéssio, não passava de um rapazote lembrando o mestre ausente, e o devaneio habitual transformava-se – aos poucos eu fora percebendo isto – em algo estranhamente premonitório.”
“Aconteceu-me de ser assaltado – sem nenhuma explicação para tanto – pelo injustificado temor de que meu conterrâneo distante, num derradeiro rompante de pobre heroísmo, dosado pelo estoico verniz de seus velhos heróis do passado, se deixasse acometer em vida pelo propósito – digo logo, dementado – de evitar que uma eventual notícia de seu falecimento chegasse aos ouvidos de sua terra natal (o que me faz lembrar, imediatamente, daquele tom mais agudo do sino da Igreja, copioso nas mortes, típico de aldeias, e capaz de repiques à grande distância).”
“Ainda lembro o estado de sisudez imaginativa, concentrado, com que entrei a especular o assunto, embora hoje me veja obrigado a reconhecer, em contrapartida, ser próprio do genuíno espírito de cautela requerer para campo de investigação hipóteses as mais descabeladas. Por outro lado, é um fato que não se deve sempre ceder a rigores de autocrítica, e assim bloquear o livre curso dos pensamentos, por estranhos que sejam, sob risco de apagar o caminho desconhecido que nossa intuição às vezes escolhe para chegar onde pretende.”
“Também sei que a forma como o fiz, a princípio, lúcida – e até certo ponto plausível –, foi depois evoluindo para um conjunto de situações inusitadas que se afastariam de padrões imaginativos comuns, não me teria sido possível nunca sem que estivesse, naquele momento, especulando sob os auspícios de ninguém menos que o personagem em causa. Trocando em miúdos: eu era induzido por ele, Carlos, a quem sempre conheci vivendo no mais perfeito, contínuo e delirante estado de subversão da realidade.”
Excerto de “MacCaco”,
romance inédito do autor
romance inédito do autor