Nos corredores do Seminário Maior da Sagrada Família, em Coimbra, encontramos sempre alguns livros dispostos sobre algumas mesinhas, acompanhadas de cadeiras, às vezes um sofá, próximo a uma grande porta de madeira e vidro, com visão para o pátio e para outras partes externas do Seminário. É um convite à leitura, em um ambiente harmonioso.
Nesse espaço, encontrei uma relíquia, obra fora de catálogo, talvez encontrada apenas em algumas bibliotecas. No Seminário, existem três bibliotecas. Uma geral, na Casa Nova, na área externa; outra, no espaço interno, especializada em obras até o século XVIII, e uma terceira, no espaço do café, oferecendo também um bom ambiente para leitura e estudo. Foi no corredor, que dá acesso à nossa hospedagem, um conjunto de quarto e gabinete de estudo, que encontrei a citada relíquia. Trata-se do livro Vida ignorada de Camões, de José Hermano Saraiva (Lisboa, Publicações Europa-América, 1978).
José Hermano Saraiva, conhecido historiador (História de Portugal, 6 volumes, 1983-1984), envereda por uma empresa um tanto espinhosa, na tentativa de desvendar a vida do poeta Luís Vaz de Camões, cuja biografia documentada é, reconhecidamente, rarefeita:
José Hermano Saraiva
“Documentos autênticos sobre a vida de Camões, documentos originais e indiscutidos, daqueles que ninguém põe em dúvida, sabe-se de sete: o perdão do rei pela cutilada na cabeça de um empregado do Paço em dia de Corpo de Deus de 1552, o privilégio da publicação de Os Lusíadas e o alvará da tença de 15000 réis durante três anos; os outros quatro são prorrogações do prazo da tença. [...] Em suma, o que se sabe ao certo é quase nada, o que se conjectura quase tudo.”
Capítulo I, O que se sabe e o que não se sabe da vida de Camões, p. 5.
Partindo do que existe documentado – a prisão, na cadeia do Tronco, em Lisboa (1552), e o respectivo perdão real (1553), pela já citada briga de rua; o privilégio para a edição de Os Lusíadas (1571), e a tença (pensão), no ano de publicação do grandioso poema (1572), renovada a cada triênio, que o poeta recebeu de D. Sebastião, o rei de Portugal, a quem a obra é dedicada –, o historiador passa a um trabalho investigativo e especulativo, com o fim de obter informações sobre o tempo em que o poeta passou como criado e escudeiro do conde de Linhares, D. Francisco de Noronha; os possíveis amores, aos 16 anos, iniciados às margens do Mondego, em Coimbra, com a sua ama, a condessa de Linhares, D. Violante, que contava, então, 18 anos, e as muitas viagens que empreendeu: Ceuta (norte da África e sul de Gibraltar), onde, em 1547, perdeu o olho direito; Macau, Goa (1553), Málaca, Vietnã, onde teria naufragado no rio Mekong, mas salvando o manuscrito de Os Lusíadas, obra que o faria célebre e o elevaria à posteridade, como o maior poeta da Língua Portuguesa; o regresso a Lisboa (1569), e a sua morte misteriosa, de que nem o ano exato se sabe (1579 ou 1580?); a companhia do jau, criado que trouxera de Java, e o traslado de um possível corpo do poeta, para o Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, na freguesia de Belém, onde se encontra até hoje.
A empresa, como dissemos, é espinhosa, tendo em vista que à documentação escassa, junta-se a repetição, ao longo dos séculos, de muitas obviedades e da invenção de qualidades outras, como uma possível fidalguia, contestável pela ausência de registros. Se fidalgo fora, não estivera preso na cadeia do Tronco, mas em casa ou no castelo real, de acordo com o que preconizavam as Ordenações Manuelinas, conforme diz José Hermano Saraiva (Capítulo 14, Temas judiciários, p. 246; Capítulo 15, A prisão no tronco e a viagem para a Índia, p. 262).
Em meio a tanta especulação e invenções, José Hermano Saraiva mergulha na poesia de Camões, a fim de retirar dali o material para o seu livro sobre a vida do poeta, alentado livro de 400 páginas. Não se pode negar o minucioso trabalho histórico de reconstituição da época em que o poeta viveu, como se constata na ampla documentação que Saraiva apresenta, cujo levantamento, se revela muito da época, pouco mostra sobre o poeta. O material mais fecundo, José Hermano Saraiva busca nos textos poéticos, fazendo-os de fonte biográfica. É aí que se encontra o problema do livro. Mesmo condenando as leituras que buscam conhecer a vida de um escritor nos seus escritos literários dados a público ou não, e, igualmente condenando a interpretação do texto que se exaure no próprio texto, o que considera um purismo, Saraiva comete, a nosso ver, a imprudência de ir longe demais. Nem podemos descartar que algo da vida do escritor está no que escreve, às vezes até de modo explícito, nem podemos nos fechar numa interpretação do texto, isolando-o de todos os fatos sociais do momento em que ele foi escrito. Os extremos são sempre limitadores. O texto literário deve ser tratado como texto literário, mesmo que ele tenha sido produzido por fatos e circunstâncias da vida do autor; mesmo os fatos e circunstâncias estando muito claros, eles passam pelo crivo da criação literária. Ou procedemos assim ou então não haverá diferenças entre a história e a poesia, tomando os termos com o sentido que Aristóteles lhes deu, há 2400 anos: a história é particular; a poesia, como criação do espírito, é universal.
Podemos ler muitos dos versos camonianos, tendo a história de Portugal ou a sua história de vida, como pano de fundo? Sim, podemos. O que não podemos é reduzir o texto literário a uma visão específica dos amores e dos infortúnios amorosos ou não do poeta. Apesar de um texto bem construído, a biografia de Camões proposta por José Hermano Saraiva força essas relações, quando a interpretação dos versos cede lugar a paráfrases, para preencher, a partir delas, as lacunas da vida do poeta. Saraiva se utiliza, sobretudo, do material da poesia lírica, como o elemento principal da vida do poeta, fundamentando os seus supostos amores com D. Violante, em seguida com a filha da condessa, D. Joana, com quem pretendera casar, explicando a laceração do eu-lírico com a separação provocada pelo desterro do poeta para a Índia, após o perdão real, e com a morte da amada, num naufrágio. Ver e subentender, em várias ocasiões, estas relações, não nos autoriza a paralisar a expressão poética, transformando-a numa verdade da vida do poeta. Se assim o fizermos, a criação perderá o sentido.
Por outro lado, nota-se alguma provocação do historiador, em relação aos críticos e aos leitores abalizados na leitura literária, como se estes não tivessem autoridade para fazer as leituras que o instrumental teórico lhes concedeu. Há alguma razão, para a provocação, pois há maus leitores e maus críticos, que fazem leituras herméticas e, por vezes, fantasiosas. Mas há-os também entre os historiadores, que, de um pedaço de pergaminho ou de um caco de cerâmica, intentam construir uma civilização.
Não podemos negar que o historiador recorre a um método, mas todos sabemos que a utilização de um método científico não é suficiente para se fazer ciência:
“O método de pesquisa biográfica que vou seguir baseia-se na hipótese de que tal diferença não existe [para ele, na lírica, tanto quanto na épica, existiriam muitos versos que dizem respeito a fatos da vida de Camões]. Vou, com o leitor, percorrer os passos mais importantes do ponto de vista autobiográfico e, em seguida, confrontá-los com os elementos de informação alheios ao texto de que podemos dispor e que são suscetíveis de corroborar, desmentir ou ajudar a entender as alusões dos poemas.”
Capítulo 3, O escuro e triste nascimento, p. 34.
O fundamento de seu método, nesse mesmo capítulo, encontra-se na sustentação de que “em numerosos poemas afirma Camões que os seus versos são o relato de uma experiência pessoal”. Acrescenta Saraiva que, embora, esta seja “uma atitude literária que pode não ser mais que artifício de estilo”, ele não vê “nenhuma razão determinada para pensar que esta seja a verdade”. José Hermano Saraiva simplesmente aceita a “verdade” camoniana, argumentando não conhecer “nenhum outro escritor português desta época em que tão insistentemente se afirme o carácter verídico e autobiográfico da obra poética” (p. 32). O perigo está no fato de que, mesmo um paralelo bem feito, isto não assegura que o que poderia ser, realmente seja. A nosso ver, ainda que alguma relação se mostre útil a ver na poesia a vida do poeta, o resultado é fruto da especulação ou, no pior dos casos, um apequenamento da poesia.
Tomemos como exemplo os nomes Violante e Joana, em seus vários anagramas, heterônimos e criptônimos, que ocorrem com frequência na obra do poeta — Violante, Biolante, Joana, Diana, Ioana, Aónia, Ana, Anha, Dinamene, Tétis —, com o eu-poético se pondo em estado de febril, ciumenta e dolorosa paixão, quer se trate de mãe (Violante/Tétis) ou da filha (Joana/Dinamene), isto seria suficiente e determinante para se falar de um amor real acontecido? Creio que não. Se a resposta é afirmativa, então, não seria poesia, mas confissão, o que está longe de ser criação poética.
Não deixa de ser importante saber da vida de um escritor renomado e da qualidade de Camões, mas até o ponto em que as informações servem para situá-lo na sua época e ajudam a entender o contexto em que sua criação literária foi produzida. No entanto, acreditamos ser o mais importante a leitura de sua obra, buscando as relações que elas estabelecem com os outros escritores, de sua época ou não, relações deste eterno e fluido rio, que é a literatura, que poderão resultar num impacto pelos séculos afora.
Veja-se, por exemplo, a estrofe 128 do Canto X de Os Lusíadas, tratando de um naufrágio no rio Mecom (Mekong), citado na estrofe anterior:
Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço os Cantos que molhados
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baxos escapados,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele cuja Lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa.
Transformá-la em documento de um naufrágio real, não seria diminuir o teor literário de uma vida, em si, naufragada, realidade que atinge universalmente quase todos os escritores, sintetizada nos dois últimos versos (itálico nosso), cuja fama não traz necessariamente felicidade? A nosso ver, as informações comezinhas de uma vida não só apequenam a obra, como terminam por cair na vala fria do esquecimento, por melhor e mais bem documentada que seja uma biografia.