Vendo, com Alcione, da janela do nosso quarto, aqui em Coimbra, as brumas do Ano Novo, lembrei-me de que publiquei neste Ambiente de Leitura Carlos Romero, um texto intitulado As brumas de dezembro, em que eu me reportava à passagem do que se convencionou chamar “Ano Novo”. Em rápidas palavras, o ano, no primeiro calendário do mundo ocidental, atribuído tradicionalmente a Rômulo, o mítico primeiro rei de Roma, começava em março, acompanhando o ritmo das estações. Como Roma se situa no hemisfério norte, entre os dias 20-22 de março, sob o influxo da Constelação de Peixes, ocorre o início da primavera, a primeira das estações, com o fenômeno conhecido por Equinócio de Primavera.
Vistas de Coimbra, Portugal, em 01/01/24 Milton Marques Júnior
Havia, claro, outra razão, de foro íntimo, para que Rômulo colocasse o início do ano em março, seguido do mês de abril. O primeiro mês recebera o nome de seu pai, Marte, o vigoroso deus da guerra. O mês seguinte, em que as flores desabrocham e se abrem, daí o nome abril (aprilis, do verboo aperĭo, aperīre, abrir), o rei o dedicou a Vênus, a deusa do amor e da vida, que, mitologicamente fora amante de Marte. Teremos, assim, os dois primeiros meses do ano romulano, consagrados ao Vigor e ao Amor, este gerador, aquele mantenedor da vida, bem representando a primavera (re)nascente.
Com o passar do tempo, o segundo rei de Roma, Numa Pompílio, acrescentou dois meses ao calendário de Rômulo, fixando os doze meses, que se mantêm até hoje. O novo calendário deixava, desse modo, de ser lunar, para ser um calendário solar, ainda que carecendo de exatidão, só alcançada com a reforma realizada por Júlio César, em 46 a. C., com a ajuda do astrônomo e sábio Sosígenes. Os dois meses acrescidos por Numa Pompílio – janeiro e fevereiro –, foram colocados ao final, continuando o ano a iniciar em março, com o retorno cíclico da natureza, por ocasião da primavera.
A constatação empírica de que, da primavera para o verão, o sol aumentava a sua intensidade revelou duas realidades: o Sol passava a diminuir a sua intensidade, a partir da manhã seguinte do solstício de verão (21 de junho, o dia mais longo do ano), até atingir o seu ponto mínimo de intensidade, no solstício de inverno (21 de dezembro, o dia mais curto do ano); a partir da manhã seguinte ao solstício de inverno, o Sol surgente era um novo Sol, que só aumentava a sua intensidade até atingir, novamente, o seu apogeu, no solstício de verão. Nada mais natural, portanto, do que juntar o útil ao agradável, isto é, juntar o novo Sol com a primavera rediviva que ele proporciona, mudando assim o início do ano para janeiro, ao trazer os dois meses que se encontravam no final do calendário para o seu começo. Tinha razão o poeta Ovídio, ao formular no Livro I de Fastos, que “o dia mais breve do ano é o primeiro do novo sol e o último do velho”
Cheguei, em vários momentos, a defender a tese de que, pela mesma lógica adotada na Roma antiga, o ano, no hemisfério sul, onde nos encontramos, deveria começar em julho e não em janeiro. Hoje, penso diferente. Avento a hipótese de que a mudança do início do ano, de março para janeiro, na Roma antiga, não se deu apenas por causa do novo Sol, surgindo a partir do solstício de inverno, e da primavera. Deu-se também por conta de um outro fator, o movimento da eclíptica solar.
Pensando assim, a lógica romana de iniciar o ano em janeiro está correta, porque o Sol, no movimento que faz em torno de 13 constelações, chamado de eclíptica, apresenta dois limites: para o Norte, a Constelação de Câncer (Trópico de Câncer); para o Sul, a Constelação de Capricórnio (Trópico de Capricórnio). O Sol, não passa destes dois pontos. Para além deles, são as zonas temperadas e, ainda mais além, as zonas glaciais. O Sol as ilumina, mas não as penetra, porque elas se encontram além dos seus limites astronômicos.
Assim sendo, o Sol retorna do seu ciclo, após o limite com a Constelação de Capricórnio, saindo do Sul para o Norte, após completar a sua eclíptica. Nada mais natural que ano começasse nesse momento. Como o limite do Sol em Capricórnio, na concepção da astronomia, é o dia 15 de fevereiro (na concepção da astrologia, é o dia 19 de janeiro), acredito que estabelecer o dia primeiro de janeiro, como data para o ano novo, tenha sido uma solução sábia. Somos seres classificadores e classificar, com um mínimo de critério, mesmo sendo uma convenção, entre tantas possíveis, é um modo de entender o mundo e de satisfazer a nossa necessidade de exatidão.
Que, com brumas ou sem elas, venha o Ano Bom, trazendo o novo Sol e o novo ciclo, que se abre, no seu retorno.