A casa era folgada.
Geralmente, usava um vestido amplamente enfeitado de laços, um diadema faiscante, enfim indumentária que nos levava a cigana perdida.
Cantava exageradamente. Não cansava: a voz medianamente afinada, a gesticulação, o charme próprio da cantora.
Os passantes pouco permaneciam ou paravam a olhá-la. Uns pela pressa, outros por estarem acostumados com ela. Falavam que era vítima de pós-parto. Outros que, desde criança, tinham mania de ser estrela de palcos.
Interessante a soprano do terraço: dava pausa no cântico, se debruçava no peitoril,
ficava a sorrir, os dentes bem conservados,
estranhamente perdida em si mesma,
como quem procurasse notas musicais
nas nuvens ou no cimo das palmeiras da pracinha.
O público era ínfimo, e se dissolvia logo.
Não havia ajuntamento, a não ser de pessoas que ainda desconhecessem a cantora enigmática.
Tudo ia se encantando na moleza da tarde quente: ela fixava os olhos num ponto qualquer, como que a nutrir-se de algo invisível. Recomeçava o cântico, geralmente um clássico, trechos de operetas; o mais incrível era o som do piano acompanhante, vindo afinado lá de dentro do casarão. Garantiam que ela morava com o pai caquético e uma menina que ajudava nos serviços da casa. Intrigante. O portão selado a cadeado, uma corrente forte, impossível algum estranho conseguir entrar para conferir o mistério do piano (que, diziam, tocava sozinho!)
O instrumento existia. O marido dela, quando vivo, fora pianista de concertos internacionais. Mas, hoje, quem tocava, acompanhando o cântico da exótica mulher? Falava-se em disco. Uma hipótese furtiva, insubsistente. Havia o sonar belo, atual de teclas tocadas no ato da execução das canções.
Se a vi? Sim. Por vezes. Era jovem verde e me deixava enlevar pela maviosidade daquela voz que se calou, nem me lembro quando. Escutavam-se histórias horripilantes sobre a meiga soprano. Que ela nem existia... E o piano?