Traduzir é uma arte! Imersos, em nosso gabinete de estudos, aqui em Coimbra, mais precisamente no Seminário Maior da Sagrada Família de Coimbra, onde estamos hospedados, passamos a maior parte do tempo a trabalhar na tradução da obra de um poeta do século III a.C., período helenístico da literatura grega, para a língua portuguesa. Trata-se do nosso trabalho de pós-doutorado junto à Universidade de Coimbra.
Aproveitamos a deixa, na verdade, para falar sobre o labor da tradução. Não nos referimos às teorias que embalam as discussões acadêmicas, mas, sim, de como a arte de traduzir repercute particularmente em nós, reflexão advinda da nossa própria vivência de enfrentamento do texto, escrito em grego antigo, e surgida pelo favorecimento do ambiente em que estamos vivendo no momento, um monumento histórico do século XVIII. A construção em si suscita tranquilidade e inspiração, sobretudo por conta da paisagem, que ao longe é vista pela janela do nosso gabinete particular.
É possível ver, além da cidade, as colinas sobre muitas das quais Coimbra foi erigida, como também o rio Mondego. O silêncio embala os nossos dias, fazendo-nos sentir em um verdadeiro retiro intelectual, pois o isolamento em relação a atrativos outros, que por ventura tirariam a nossa atenção, leva-nos a uma maior concentração, sem o risco de perder o foco, afinal, o objetivo da nossa vinda aqui foi estudar. Mas podemos falar, também, de um retiro espiritual, pois o silêncio do lugar, do mesmo modo, põe-nos em contato maior conosco próprios, levando-nos a incursões para dentro de nós mesmos, o que nos proporciona a possibilidade de redimensionar a realidade e de expandir a nossa capacidade de autopercepção. Mas voltemos à tradução!
Vistas de Coimbra com Alcione Albertim Acervo da autora
Quando afirmamos que traduzir é uma arte, referimo-nos a ela tanto como τεχνή quanto como ποίησις. Em relação à primeira, trata-se do saber fazer, da habilidade de fazer algo, neste caso, de passar o texto de uma língua para a outra, o que demanda não apenas o conhecimento da língua de partida e da língua de chegada, mas também do contexto de cada uma delas. Quanto à ποίησις, diz respeito à criação, em que está inserida a capacidade criadora do tradutor frente às soluções que precisa dar aos desafios apresentados na acomodação de um texto para o outro, a saber, o original e aquele resultado da tradução. Logo, há técnica e há inspiração no fazer tradutório!
Por outro lado, o ato de traduzir é um fenômeno, no sentido grego do termo, φαινόμενος, algo que surge, que aparece, de maneira particular para cada um. A palavra grega é um particípio do verbo φαίνω, que significa exatamente “tornar-se visível, aparecer, revelar, fazer conhecer”, e por estar na voz média, designa a singularidade, a particularidade do sujeito quanto à ação verbal. Nesse sentido, à medida que avançamos na tradução, o texto escrito na língua que intencionamos traduzir, vai se desvelando diante dos nossos olhos de tradutor, a princípio timidamente, resistindo à sedução, à entrega total, para depois ceder, mostrando-se em suas particularidades e nuances.
Aquele que a princípio era estranho, paulatinamente se torna íntimo, possibilitando a quem busca desvendá-lo, transitá-lo a fim de construir um novo texto, que expressará o autor do original, mas também trará a marca singular do tradutor, tendo impresso nele a sua própria subjetividade. É um labor prazeroso, mas árduo ao mesmo tempo, pois está sempre a nos desafiar, testando-nos para ver se conseguimos ir além. Certamente, o texto traduzido tem o seu tempo de validade, sendo substituído, com o passar dos anos, por traduções mais recentes, mais atuais, pois é o andar natural nesse universo. Para nós, particularmente, o mais rico de todo esse processo é o caminho, o encantamento que cada descoberta proporciona, cada texto, seja em grego, seja em latim, suscitando crescimento e expansão do nosso horizonte de expectativa. É, sem dúvida alguma, emulador!