Sal, era o gosto da pele na boca. Azedo era o cheiro do couro molhado da bola enquanto secava em dias pós-chuva quando a terra molhada amaciava os pés que iriam chutar e se tatuar com o pó, o barro, a poça d'água e a grama. A outra água, mesmo sem ter sabor, era sentida doce pela língua ao matar a sede. Os olhos capturaram todos os verdes, vermelhos, azuis e todas as tonalidades, mesmo que à distância as figuras ficaram embaçadas. Anos coloridos.
A mesma mistura de cores do quadro näif que outrora sempre visitava o olhar. O cenário piscante de uma árvore ou fachada qualquer mudando o mesmo cenário em uma época específica do ano. A mesma aquarela das flores de um jardim distante preparado pelas mãos botânicas com esmero, onde até a fotografia capta o cheiro. Do mesmo mundo onde a água viaja por curvas e quedas agitadas até banhar sorridentes corpos ao longo de uma trilha.
Em outros lugares os sentidos ganham novas dimensões. O trem descendo a serra ziguezagueando pelo meio do verde. Ou o casario posto há dezenas de anos a expor multicolorido histórias de outras pessoas pelos mesmos caminhos. Onde se misturava o sangue dividido, e por ali seguiam os pés calçados e os desprotegidos. As pedras amontoadas acumulam com o tempo sussurros e murmúrios, gritos e discursos, são como páginas fechadas em estantes pedindo para serem abertas e lidas.
Segue o mundo, segue tudo. Da banda carnavalesca solta pelas ruas ao cortejo religioso, pois ambos, são profissões de fé e fazem sorrir de alegria com seus cheiros e cenários próprios, são festas de tempos distintos. E ressurge o campo silencioso tragando corpos que hão de adubar a terra, unir-se ao solo, evaporar-se diluído e subir aos céus para cair chuvoso sobre todos. De início, gosto amargo, depois, saudoso. Gotas de indivíduo, chuva de pessoas para alimentar o ciclo.
O dom abrocha pela repetição do treino. Os dedos sentem automaticamente as cordas do violão, os pés identificam o peso da bola, calibram a força necessária para o deslocamento do ar, o corpo percebe as correntes e redireciona a embarcação ao sabor do vento. Os olhos se emocionam com as fotos e todos os fatos e a possibilidade de futuros nos novos pequenos seres. Sequência do filme projetado e construído a cada nova cena, cenário, premiado pelo roteiro adaptado ao dobrar a esquina.
Sensivelmente as cores mudam. Os cabelos rareiam, branqueiam. Os cheiros se alteram da infância do berço ao corpo mastigado por tantos anos. A longa estrada cobra preços, pedágios, mas oferece paisagens, memórias. Da salgada pele e lágrima, do doce sorriso e olhos caramelados pelos banhos de rio, das piadas em tiradas rápidas, da névoa baixa que com o tempo a todo abarca.
E dia após dia, do levantar do sol desnudando a estrada, até deitar os raios em últimas pinceladas, o seguir ininterrupto e imparável. Pois, a vontade a vida se sobrepõe ao homem. Resta a escolha. Opção um, sorrir!