Sentir que alguém compreendeu a essência mais profunda do que você escreveu talvez seja a maior recompensa do ato literário. Escrever...

Quando a luz ecoa como o som

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Sentir que alguém compreendeu a essência mais profunda do que você escreveu talvez seja a maior recompensa do ato literário. Escrever, pintar, compor, esculpir, são vias de expressão interpostas entre autor e receptor em que se realizam os objetivos da arte. Por mais inabordáveis que sejam os motivos que propulsionam a concepção de uma obra; por mais oculta que possa estar a origem das ideias, deve haver no autor algum desejo expresso ou latente de transmitir emoções. Arte é como religião,
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ambas nasceram para nos conectar com estados espirituais nirvânicos.

Ao transcrever a emoção sentida na Música, nem sempre imaginamos que o cenário sugerido será percebido fielmente pelo leitor. Quando escrevemos sobre “A Canção da Terra”, obra sinfônica de Gustav Mahler baseada em poemas chineses do século 7 e 8, não supúnhamos que o conteúdo pudesse ser depreendido de forma tão magnífica por alguém que não conhece música erudita a fundo.

Mas, aconteceu. O amigo e professor de Letras Clássicas e Vernaculares, Milton Marques Júnior, muito gentilmente, teceu o comentário que fez a luz ecoar como o som. Permitam-nos transcrevê-lo:

“Meu amigo, dessa vez você foi mais longe, com seu texto a respeito de “A Canção da Terra”, de Gustav Mahler! Música, canto lírico, literatura e artes plásticas, estou para ver texto mais completo, casando as várias formas e gêneros artísticos. Você o faz não somente com conhecimento sobre o que diz, mas sobretudo com sentimento, conduzindo, como um bom maestro, o leitor a penetrar na poesia do que você captou.

Não conheço Mahler e você já sabe que desconheço a música erudita, no entanto, começo a acompanhar suas crônicas artísticas
Austrian Sch.
e me vejo envolvido com a beleza das composições, dos detalhes da música, do efeito dos instrumentos, mais ainda quando esse deleite é provocado pela simbiose de sua análise.

Cativou-me em especial o fato da desventura de Mahler com a perda de sua filha única, dessa fuga pela embriaguez artística, suponho, como forma de superar uma dor que só compreenderia mais tarde.

Acredito não ter sido à toa que ele escolheu o nome “A Canção da Terra”, para essa sinfonia que ele jamais viu executada. A terra é, sim, a maior das divindades da mitologia grega. É a divindade que primeiro se constrói e de que tudo se cria. Se podemos estabelecer uma diferença entre a criação do mundo pela herança judaico-cristã e pelos gregos, podemos dizer que naquela Deus cria a Terra estando de fora dela.

Na cultura grega, a Terra é a primeira referência, o primeiro apoio para um universo que ela mesma cria, inclusive o que deve nascer e crescer nela – montanhas, oceanos, seres e as demais divindades, que depois comporão o panteão olímpico. E isto não se fará sem dor ou sem perdas. Se “sombria é a vida, sombria é a morte”, é porque a deusa-mãe e divindade maior teve que dar à luz, de suas entranhas, ao Céu constelado,
G.F. Watts, 1875
trazendo o brilho ao que antes era apenas Caos – abismo e escuridão. Em seguida, sendo coberta pelo próprio filho, tem de guardar dentro das entranhas a vida dos filhos que gera, que o pai não permite sair; guardar a vida como se fosse uma morte. São a vida e a morte, sombrias, que precisam de uma ação para se realizar em luz. Ao que parece, Mahler precisou embriagar-se de arte para sair da morte para a vida.

Estou escrevendo ao som da sinfonia. Uma maravilha. Indescritível, menos para a sua sensibilidade, que traduz poeticamente essa transformação e essa afirmação proposital do compositor de que a arte não tem limites rígidos, a não ser para que não ousa. E ele ousou.

Por fim, Elias Canetti, o grande escritor de “Auto de fé”, tinha 6 anos, quando Mahler morreu. Ele não chegou a conhecer o compositor, mas depois conheceu sua segunda filha, a escultora Anna Mahler, com cujos olhos se encantou. Anna nasceu em 1904, dois anos após a morte de Maria. Talvez esse nascimento de mais uma filha tenha influído no renascimento de Mahler e na beleza desta sinfonia. Parabéns!”

Obrigado, mestre Milton! Como costumava dizer Carlos Romero: “Um elogio tem a dimensão de sua origem”. Vindo de você, então

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