Inteiramente fascinada, encantada, maravilhada com a narrativa profundamente humana de Annie Ernaux, concluí a leitura de PAIXÃO SIMPLES, uma obra de pouco mais de cinquenta páginas, intimista e introspectiva, espécie de inventário da paixão intensa e proibida experimentada pela autora por um homem chamado A.
A escrita sensível e honesta, precisa e lúcida de Annie Ernaux, vencedora do Nobel de literatura em 2022, toca nos altos e baixos da paixão e do desejo, explora os complexos caminhos do coração, desvela a inesperada e irrefreável disposição ao arrebatamento, à entrega profunda e corajosa a experiências avassaladoras de quem se vê de repente perdida, completa e atrozmente perdida, em intensa paixão.
Em sua perspectiva única, arrojada e sensível, Annie Ernaux apreende sentimentos profundos e íntimos, aborda temas como a fragilidade dos relacionamentos e a dificuldade de conciliar a força audaciosa e impetuosa da paixão com o sossego insípido e entediante do edifício da cotidianidade.
Centro de sua existência – conta-nos Annie - a paixão passa a consumir seus pensamentos e ações; toma seu tempo e energia, enleva e rebaixa, reduz sua vida a uma espera constante dos momentos em que poderá encontrar o seu amante. A partir da exposição de sua existência reduzida à espera e ao vazio que se sucedia à sempre parcial realização do desejo, Ernaux delineia a forma de existir do homem por quem se apaixonou, casado e mais velho, a agonia de quando os encontros se tornam mais espaçados, o fim da relação , a dificuldade de deixar para trás essa vida tomada por um desejo tão intenso e imperativo.
Ao longo do seu relato, ela reflete sobre as consequências dessa espera e dessa paixão; convida-nos a refletir se vale a pena sacrificar a vida em prol de um amor que é proibido e que pode nunca se realizar plenamente e faz ainda reflexões sobre a própria escrita e sobre o papel da literatura na compreensão da experiência humana.
Somente quando o caso termina, Annie Ernaux começa a escrever. Expondo a vida, a narrativa erotiza a linguagem, conduz ao reencontro do prazer, à redescoberta do gozo da paixão experimentada. Descrita como algo intenso e avassalador, que consome inteiramente quem por ela é tomado, a paixão surge associada a Eros, sentimento de amor e desejo intenso; mas do mesmo modo efêmera e passageira carrega a inevitabilidade da morte, sendo assim também vinculada a Tanatos. Tenso e doloroso, o escrito confirma as estreitas relações entre Eros e Tanatos, soando agora como tentativa de resistir à morte, ao fim, e de manter viva a chama da paixão.
Trata-se de uma obra magnífica, cativante, que prende o leitor do princípio ao fim. Ernaux escreve sem rodeios, sem subterfúgios; entrega-se à confissão de sua paixão profunda de forma clara, direta, incontestável, transparente. Com a sua prosa poética, fulgurante, coloca em nossas mãos um intenso manifesto dionisíaco, a favor da liberdade de desejar sem arrependimento, se entregar sem transgressão, amar sem culpa.