85 anos viveu Nélida Piñon, uma das grandes da literatura brasileira. Falecida ano passado, 2022, em Lisboa, foi apanhada pelo “sopro...

O testamento de Nélida

nelida pinon

85 anos viveu Nélida Piñon, uma das grandes da literatura brasileira. Falecida ano passado, 2022, em Lisboa, foi apanhada pelo “sopro da morte” em plena atividade, como sempre viveu, desde mocinha, essa valente descendente de espanhóis da Galícia, nascida no Rio de Janeiro em 1937. Filha única e sem filhos, tomou a si a responsabilidade de inscrever o nome familiar na história do Brasil, através da escrita, ofício a que se dedicou por inteiro e que lhe retribuiu com muitas glórias, inclusive a de ser a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras.

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Eis-me agora, em mãos, um ano após sua partida, com seu livro póstumo, espécie de testamento e despedida. Um conjunto de 147 textos curtos, onde sua vida, suas experiências, suas amizades, sua família, dores e alegrias estão expostas fragmentariamente, de forma essencial, enxuta, como se, na altura em que foram escritos, ela já não precisasse mais de muitas palavras para se comunicar com o leitor. Como se ela, com os anos, já tivesse atingido aquele estágio em que até o silêncio adquire eloquência e significado. A concisão da sabedoria. E a sabedoria da concisão.

O livro ia se chamar Andanças de Nélida, mas acabou sendo Os rostos que tenho (Editora Record, Rio de Janeiro, 2023). Ambos são bonitos e têm a ver com o conteúdo da obra, mas prefiro o segundo, o que ficou, pela teatralidade implícita e que está tão bem traduzida nas fotografias da autora na capa e na contracapa. São belas fotos de Nélida já idosa, de mãos e rosto enrugados, sem artifícios nem disfarces, exceção feita ao cabelo pintado, humana concessão à vaidade feminina, compreensível – e até desejável. Na capa, ela está cobrindo o rosto com as mãos; na contracapa, com a face descoberta. Nas duas, a expressão da vida vivida, da vida gozada e sofrida, plenamente.

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Nélida Piñon Jorge Bispo
Na leitura dos pequenos capítulos, percebe-se a presença da morte que se avizinhava sorrateira, o que não era surpresa para a lúcida octogenária. A finitude é um fato que os escritores e artistas não podem ignorar, sob pena de alienação perante a realidade. Há que se enfrentar o fim de alguma maneira, até mesmo brincando de esconde-esconde com ele. Nélida preparou-se com calma para o desfecho inevitável que o tempo trazia: fez testamento de seus bens materiais e doou seus acervos de livros e objetos de arte a instituições sérias, que deles cuidarão, preservando a memória da benemérita.

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Jorge Bispo
E a posteridade? Esta só Deus sabe. Os homens não têm como garanti-la nem prevê-la. Na quase totalidade dos casos, é uma loteria. Nélida tem a seu favor sua notável obra literária, composta de romances, ensaios, crônicas e outros escritos, de qualidade reconhecida pela crítica nacional e estrangeira. Mas será isso o bastante? Exemplos temos – e vários – de autores consagrados ao seu tempo e hoje relegados ao olvido. Mas Nélida sempre foi guerreira, sempre lutou por seu nome e seu espaço em nossas letras. De onde estiver, se tal lhe for permitido, continuará a zelar por seu futuro entre nós, um futuro que ela bem merece.

Desde cedo ela soube que sua vocação era a literatura. E assim, aos poucos, foi desbravando seu caminho. Não foi fácil, como não é para ninguém. Mas o fato de ser mulher solteira, descendente de imigrantes e sem apadrinhamentos fez a caminhada ainda mais árdua. Livro a livro, ela foi revelando seu valor, até alcançar o reconhecimento que culminou na ABL. Participante, não se omitiu em defesa da liberdade de expressão durante a ditadura militar nem em defesa de outros direitos dos escritores. Foi a congressos e seminários aqui no Brasil e no exterior. Viajou muito, conheceu pessoas importantes e simples mortais, fez amizades valiosas que preencheram de afeto sua vida de celibatária. Teve amores, sobre os quais fala discretamente, como que para testemunhar que também conheceu as delícias e agruras das paixões. Privou da intimidade de Lygia Fagundes Teles e de Clarice Lispector, colegas de ofício. Esta última, acompanhou no hospital até o suspiro final, segurando-lhe a mão.

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Ligia Fagundes Teles / Clarice Lispector
Agência Braisl / Fundação Casa de Rui Barbosa
Tudo isso ela repassa nos breves textos. Uma espécie de autobiografia. Ou de memórias. Mostra em cada capítulo um rosto seu, um olhar, uma sensibilidade, uma lição (mais de aprendiz que de mestra). Suas cicatrizes. Seus aprendizados. Seus percursos (os retos e os tortuosos). Suas pequenas e grandes alegrias. O cotidiano doméstico e familiar. Seus bichos de estimação. A figura emblemática da mãe Carmen, por quem foi amorosamente cuidada e de quem cuidou na mesma medida. O avô galego, o pai, as tias, uma grei (ela gostava dessa palavra) de que se orgulhava muito.

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Elisa Cabot
Impossível deixar de notar a presença e a influência da Espanha em sua vida e obra. Essa Espanha, mais propriamente a Galícia, trazida pelo avô Daniel (anagrama de Nélida) no sangue e na alma, especialmente na culinária farta, sempre lembrada pela neta fiel às origens. Por isso, afirmando sempre sua irrenunciável brasilidade, Nélida incorporou tão bem a península Ibérica à sua geografia pessoal e literária. Machado, Camões e Cervantes foram seus mestres principais. Uma passagem notável é a narrativa de seu encontro com a célebre ensaísta norte-americana Susan Sontag. Estavam ambas numa universidade dos EUA fazendo parte de um júri literário. Conheceram-se e conversaram bastante. Sontag não conhecia nada sobre a literatura de língua portuguesa. Nélida então lhe apresentou Machado de Assis. Pouco tempo depois, a ensaísta publicou na prestigiada revista New Yorker um artigo sobre o nosso bruxo, abrindo-lhe as portas para o mundo. Vejam só.

Além de testamento, esse livro póstumo faz com que a autora continue nos falando abertamente, como sempre nos falou. Às páginas 76 ela escreve:

“Chega de vaidade, convém ler o Eclesiastes e aceitar a degradação que se esconde no corpo de cada qual”.

Sábio recado de uma idosa que amava a vida e dela fruiu completamente até o derradeiro instante, com coragem e sem lamentações.

Colhida em Lisboa, cidade de sua afeição e onde por vezes habitou, repousa hoje Nélida no mausoléu da ABL, junto à sua mãe. Não poderia ser outro chão a receber aquela que, por mérito e amor, tornou-se, como poucos e poucas, uma brasileira de quinhentos anos.

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