O fato de o Sol aparentemente girar ao redor da Terra... ou de nós, fez-nos pensar durante séculos que éramos o centro, o objetivo do Universo e, consequentemente, de Deus. O sistema planetário concebido pelos antigos confirmava isso, assim como os autores do Antigo Testamento, que embarcaram na fantasia e criaram a cena em que Josué detém o Sol e a Lua para que houvesse tempo de terminar a batalha com a vitória sobre os amorreus.
Mas num belo dia do século XVI, um fabricante de lentes - o holandês Lippershey - criou a luneta e a ofereceu ao seu governo, que passou a utilizá-la para fins bélicos: podia-se, agora, ver as bandeiras - nacionalidades - dos navios, à segura distância de seus canhões. Maravilha. Até que tal instrumento chegou às mãos de Galileu Galileu, e o desgraçado italiano guaribou a geringonça, tornando-a num telescópio, voltou-o pro céu, e o que viu foi chocante: havia quatro luas ao redor de Júpiter!
- Logo, nem tudo orbita em torno da Terra!
No genial texto para teatro, “A Vida de Galileu”, Brecht acompanha a dramática pressão da Igreja sobre o astrônomo, para evitar que se espalhasse a descoberta que negava – para pavor dos padres - a infalibilidade bíblica. Mas a verdade acabou se impondo e a consequência pior, infelizmente, foi a de que a autoestima humana sofreu um colapso. Passamos não só a nos ver como escanteados do centro do sistema, como ficamos cientes, também, de que esse próprio sistema está situado bem longe do centro da Via Láctea, que, por sua vez, é apenas mais uma, na infinidade de galáxias perdidas na treva do espaço.
Mas… se há uma multidão ante a Mona Lisa, no Louvre, há um fenômeno acontecendo: a Gioconda encara a todos ao mesmo tempo.. quaisquer que sejam os ângulos sob os quais é vista. Um de seus propalados mistérios? Não. O casal Dr. Aldrovando e Célia Grisi ( para os quais, há anos, dei um quadro em que, a pedido dela, Cristo diz “Siga-me!”, como presente de casamento ), conta-me que seus filhos sentiram medo, quando pequenos, desse Deus que os seguia com os olhos o tempo todo, quando passavam na sala. Tiveram com minha pintura, na prática, uma “leitura” deste Salmo:
“Senhor, vós me perscrutais e me conheceis. Sabeis tudo de mim, quando me sento ou me levanto. De longe penetrais meus pensamentos.
Quando ando e quando repouso, vós me vedes, observais todos os meus passos. A palavra ainda não me chegou à língua, e já, Senhor, a conheceis toda. Vós me cercais por trás e pela frente, e estendeis sobre mim a vossa mão”.
Não sou nada místico. Ligue o Jornal Nacional e verá que William Bonner irá segui-lo com o olhar, e é fascinante pensar que se houver trinta, cinquenta pessoas com você na sala, todas o verão a encará-las ao mesmo tempo, como faz Mona Lisa ante cada leva de turistas à frente dela. Mas se, pelo contrário, uma câmera juntar o que toda essa gente está vendo, o resultado será ininteligível, puro Picasso em seu cubismo da fase mais hermética.
Mas há mais coisas que a multidão não vê ao se postar ante a “mona”, dona Lisa Gherardini, mulher de Francesco di Bartolomeo di Zanobi del Giocondo: O quanto é estreita, por exemplo, a faixa da luz visível para nós, espremida entre o infravermelho e o ultravioleta. Não verá – a menos que seja o Clark Kent - o que há por trás das tintas, à luz dos raios-x.
Vamos para Nova Iorque. Será fácil sentir que a estátua da Liberdade é gigantesca, quando ficarmos de tal modo próximos dela, que não conseguiremos sequer vê-la inteira. Fácil, também, será constatar que ela parece minúscula, vista de Manhattan.E podemos entrar nela e lhe conhecer o interior, tomar conhecimento de que tem 46,5 metros de altura, pesa 160 toneladas, de que foi presente dos franceses, que foi inaugurada em 1886, que foi projetada por Frédéric Auguste Bartholdi, etc, etc. Se juntássemos todos esses fatos e fotos acima ao mesmo tempo, nós a veríamos – se não tivéssemos a capacidade de operar com uma multidão de dados – novamente como cubistas. Mas nossa mente é capaz de “trabalhar” com todos esses dados – como fiz aqui.
Desse modo, somos limitados como microscópios, que não conseguem ver o espaço exterior; como telescópios, que não veem o mundo subatômico, mas capazes de operar com as informações colhidas através deles e continuar sendo, como Protágoras disse há dois mil e quatrocentos anos: “a medida de todas as coisas”. A partir desse conceito, Vitrúvio - arquiteto da antiga Roma - estabeleceu a figura humana como principal fonte de proporções para suas construções. É famoso o “Homem Vitruviano”, de Leonardo, em que um nu masculino frontal de pé, as pernas abertas, braços erguidos, abertos, compõe um quadrado inscrito num círculo, coisa que o arquiteto franco-suiço Le Corbusier adaptou aos tempos modernos com seu “Modulor”.
Bom.
Mas eis que o Salmo que já citamos nos volta à mente:
“Senhor, vós me perscrutais e me conheceis, Sabeis tudo de mim, quando me sento ou me levanto. De longe penetrais meus pensamentos. Quando ando e quando repouso”, etc, etc. "Conhecimento assim maravilhoso me ultrapassa, ele é tão sublime que não posso atingi-lo.”
Como seria possível essa preocupação com o ser humano, que é a “quintessence of dust” – “quintessência do pó” – como diz o deprimido Hamlet, na época de Galileu? Resposta: Deus, que - como diz um distante e desconhecido autor citado pelo Padre Vieira n”Os Sermões” -, é um círculo imenso “cujus centrum est ubique, circunferentia nusquam”: “cujo centro está em toda parte, a circunferência em nenhuma”. Troquemos “Deus “ por “Natureza” – como faria Espinosa - e o veremos mais perto de nós.
E troquemos isso ainda mais em miúdos: Há uma frase de Cervantes, no “Dom Quixote”, que explica isso muito bem. Num puxa-encolhe entre dois personagens de uma história contada por Sancho Pança, um lavrador que recebe um nobre em sua casa, não aceita ocupar a cabeceira da mesa em que está o fidalgo, temendo ofendê-lo, e recebe esta lição crua do outro:
- Sentaos, majagranzas, que adondequiera que yo me siente será vuestra cabecera.
Isso dilui – na minha opinião - esta outra frase do físico, astrônomo, romancista e roteirista Carl Sagan, grande divulgador da ciência, através de livros e vídeos, tempos atrás:
- Se estamos sozinhos no Universo, isso é um tremendo desperdício de espaço…
Graças ao sentimento de humílima solidão como o dele, não faltaram argumentos de que o que de melhor fizemos na antiguidade foi obra de alienígenas:
Pedras de duas e meia toneladas na pirâmide de Quéops?: coisa de ETs.
Ou mais:
Pedras de 900 a 1400 toneladas - devidamente cortadas e encaixadas - na base do templo de Baal, no Líbano?: coisa de ETs.
No antigamente famoso “Eram os deuses astronautas?”, von Däniken chamava nossa atenção para uma figura babilônica que estaria usando relógios de pulso. Bastou-me ver a foto com mais qualidade, numa História da Arte, pra constatar que se tratava de mera pulseira com uma rosácea. Jesus? ET também. Prova disso seria uma fração do céu sobre o “Batismo de Cristo”, de Piero della Francesca, em que se veria um disco voador, quando a visão do céu completo nos mostra que aquela é mais uma das nuvens da cena, no estilo duro do artista.
A realidade sempre impressiona mais que qualquer fantasia – como Drummond já constatou ao ler as reportagens de seu tempo, sobre a Batalha de Stalingrado. Quando se pensa, por exemplo, que o mais pesado que o ar levantou voo pela primeira vez com o precário 14-bis de Santos Dumont em 1906, e que em 1969 o Homem já disparava para a Lua na Apollo 11, estabelecendo, como primeira consequência das primeiras viagens espaciais, o incremento impressionante de nossas comunicações, é óbvio que perguntemos:
- O que vem por aí?:
- Gente na linha Flash Gordon/ Neil Armstrong.
Porque o ser humano é que vai povoar e colonizar o Universo, sem dúvida. Simplesmente porque ele é realmente feito de Universo e pelo Universo, com todos os seus defeitos e efeitos especiais, exatamente, ciente de que centrum est ubique, circunferentia nusquam... e que “adondequiera que se siente” ali será a cabeceira.