O Tema da redação do Enem 2023- 'Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil'- me deu uma esperança de que existe luz no fim do túnel. Digo, para a vida das mulheres. Ou pelo menos, me deu alegria de ver os jovens de todos os gêneros, classes e credos a pensar e escrever sobre o assunto. E senti o impacto ao meu redor, quando vi pais discutindo o tema com os filhos.
Já há décadas escrevo sobre o assunto; crônicas e conversas sobre a vida de exaustão das mulheres e mais: maternidade x criação artística; carga mental; solidão da maternidade; criação de filhos; ausência do pai; relação dona de casa x domésticas; trabalho doméstico; cuidado com idosos, e tantos outros temas. Já citei Virginia Woolf dezenas de vezes com os seus textos que me alimentam, especialmente – “Profissões para mulheres”. Mas encontrei livros como: O mito do amor materno, de Elizabeth Badinter e Of Woman Born: Motherhood as experience and institution, Adrienne Rich, que me deram todo um suporte desse conhecimento e aprendizado, nem que fosse filosófico.
Desde os tempos com a minha mãe, passei a vida ouvindo-a reclamar do cansaço, mas ao mesmo tempo, como as da sua geração, e o sentimento paradoxal, não deixava ninguém “roubar o seu protagonismo” na cozinha. O meu pai? Um homem bom. Guardo no meu coração o seu caráter e grandeza. Mas, ausente. Trabalhava para o sustento. Um filósofo dublê de comerciante, não combinava com vendas e agressividade na área. E tinha as suas fraquezas. Olhava-nos com carinho. Gostava de conversar na rede conosco. À minha mãe era exigido que cuidasse, economizasse, costurasse, ninasse, brincasse, cantasse e, ainda fosse esposa dedicada e amorosa. A conta não fechava. Ela com as suas querências submersas, mas só com as filhas crescidas, e que, até mesmo antes da viuvez, foi possível dar asas um pouco, aos seus anseios mais subjetivos – viver a vida cultural da cidade, ir ao cinema ou caminhar na praia, como tanto gostava.
No meu caso, tive dois filhos, e todos os dois tiveram pais amorosos, mas de uma certa forma também ausentes. O trabalho e a mentalidade de que a mãe cuida me deixavam atônita e exausta com a solidão na maternagem e a carga mental insuportável. Cuidar da casa, de uma profissão, da rua e das minhas expectativas mais profundas que, nem mesmo eu sabia quais eram, me exauriam. Ainda busco um tanto.
Na Revista Marie Claire de novembro, leio uma entrevista pontual e certeira da psicanalista que admiro e sigo, Vera Iaconelli, que acaba de lançar um livro interessante e imprescindível: Manifesto Antimaternalista: Psicanálise e Políticas de Reprodução (Ed Zahar), em que questiona o modelo atual de maternidade e discute esse assunto espinhoso de sermos mulheres num mundo essencialmente patriarcal. E ela afirma: “É uma ideologia que serve ao capitalismo, uma vez que cria essa equação na qual a permanência das próximas gerações fica sob inteira responsabilidade do trabalho invisibilizado das mulheres, o trabalho do cuidado.”
Vera passeia sobre a condição feminina em uma cultura ainda estruturada nos privilégios dos homens e aborda de forma cirúrgica ideias importantes, quando fala desse modelo de maternidade em colapso. Quando perguntada: “Porque a atual maternidade está em colapso?”. Responde: “porque é inexequível. Não conseguimos estar em dois lugares ao mesmo tempo.” Como podemos estar no mercado de trabalho violento para com as mulheres, e ser mães de bebês e de filhos até a saída de casa. Cuidar dos velhos, a população cada dia mais longeva; dinheiro pouco para pagar profissionais, que hoje tem os seus direitos garantidos. E Vera fala também da definição de “maternalismo”, um discurso ideológico que tenta justificar que a sociedade deixe o cuidado com as próximas gerações exclusivamente com as mulheres, e ainda agrade com a cereja do bolo a afirmar que, essa competência seja eminentemente feminina. Quanta armadilha! Quando perguntada qual a queixa maior das mulheres na clínica psicanalítica, responde sem piscar: “a impossibilidade de conciliar a vida familiar, tendo ou não filhos, com a vida pessoal”.
Vera também fala de alto e bom tom, algo que sempre concordei: “Do mesmo jeito que ainda não nasceu um homem sem machismo, também não nasceu uma mulher”. Pode parecer que não, mas parimos os filhos homens, os educamos, e sim, ancestralmente ainda carregamos tantos conflitos, dilemas e tatuagens desse mal da civilização dos gêneros. Mas caminhamos tentando mudar isso.
Quanto às angústias modernas, Vera fala que a saída é: “abraçar a vida, ter direito ao sofrimento, viver a alegria, o prazer, o sexo. Diria algumas. Cada um/uma completa a lista como bem quiser.
Pelo visto, seja no Enem, nas revistas, ou dentro de casa, ainda há de vir um tempo tempo, para que tenhamos tempo, para sermos felizes sendo mães e termos espaço e tempo fora dessa equação tão naturalizada como sendo só das mulheres.