Recebo uma convocação, em forma de uma provocação benfazeja do meu amigo Stelo Queiroga, a partir de uma postagem que ele replicou no ...

Carta a Stelo Queiroga

oito noite latim
Recebo uma convocação, em forma de uma provocação benfazeja do meu amigo Stelo Queiroga, a partir de uma postagem que ele replicou no Facebook. A publicação chama a atenção para o fato de que poucos teriam percebido que a palavra “noite” é composta da letra “n” mais a palavra “oito”. Segue-se, então, uma lista com “noite”, nas mais conhecidas línguas latinas:

PortuguêsN + oito = Noite
Espanhol N + ocho = Noche
Italiano N + otto = Notte
Francês N + huit = Nuit
Em primeiro lugar, podemos dizer que existe aí uma conta de chegada de modo a agrupar a palavra “noite” à necessidade de quem “descobriu” o memorável feito. Entendo, claro, que a postagem não está cuidando de etimologia ou de um estudo aprofundado da língua, podendo ser apenas uma curiosidade interessante, além de um recurso mnemônico, bastante útil, ressalte-se, para reter, em vários idiomas, uma palavra proveniente de um mesmo ramo, no caso, o ramo itálico, mais especificamente do galho chamado Latim, tomando como base a árvore genealógica das línguas, cujo tronco comum é o indo-europeu.

Se, contudo, esta curiosidade mnemônica, digamos assim, for tomada a sério, equivaleria dizer que biscoito é formado de “bisc” + “oito”, porque em espanhol pode ser bizcocho ou biscocho; em francês, biscuit, e em italiano, biscotto. Acrescente-se, que no caso de biscoito, não há necessidade de conta de chegada, como acontece com a palavra noite... Explicaremos mais adiante.

Na realidade, meu amigo Stelo, trata-se de uma falsa etimologia, quando procuramos associar tanto noite, quanto biscoito à palavra oito. Para entendermos melhor o que acontece, diremos que o grupo oc, ec, uc, ac, da língua latina, sofre um processo de ditongação, quando de sua passagem para a língua portuguesa. Assim, oc, em noctem, passa a ser oi/ou (noite/noute, este último em desuso, mas guardado no sistema, para ser usado em qualquer tempo); ec, em pectum, torna-se ei (peito); uc, em fructum, vem a ser ui/u (fruito, termo arcaico, e fruto, termo corrente, sem ditongação); ac, em lactem, transforma-se em ei (leite).

Com relação à palavra “oito”, oriunda do latim octo, o processo é o mesmo, ocorrendo a ditongação, uma das marcas da língua portuguesa, que a diferencia do espanhol, por exemplo. Até onde eu sei, meu amigo, não existe qualquer relação etimológica ente “oito” e “noite”.
A palavra “noite” (nox, noctis, em latim) vem para a língua portuguesa, através do acusativo, “noctem”, o chamado caso lexicogênico, gerador das palavras, na passagem para a nossa língua, cuja transformação se dá com o processo descrito abaixo:

noctem > (apócope do “m”) nocte > (forma hipotética, que dará origem a noute) *noyte > (ditongação) noite

Acrescente-se que se a palavra “noite”, pertencente à 3ª declinação em latim, é declinável, podendo, a depender da sua função sintática, cair em algum dos casos latinos (no singular: nox, nox, noctem, noctis, nocti, nocte; no plural: noctes, noctes, noctes, noctium, noctibus, noctibus), o mesmo não ocorre com a palavra “oito”, por ser indeclinável, como todo numeral a partir do número “quatro”, existindo apenas a forma octo, para qualquer função sintática. Por isso me referi a uma conta de chegada no caso de noite, cujo artifício não pode ser atribuído a biscoito, por ser esta uma palavra declinável.

Biscoito, etimologicamente, significa “cozido duas vezes”. Sim, isto mesmo, meu amigo. A palavra é oriunda de biscoctum, em que “bis” significa duas vezes e “coctum” cozido, por ser particípio passado do verbo coquo ou coco, cocĕre, em latim.

Como podemos ver, Stelo, as línguas têm as suas armadilhas. Uma delas é que parecer é diferente de ser. Devemos procurar nos guiar pela sua etimologia e estrutura, sinais de que estaremos sempre na boa via. Do mesmo modo que Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, em 1139, na Batalha de Ourique, contra os mouros, foi guiado pelo sinal que o levou à vitória, fundando o reino de Portugal: In hoc signum vinces – “Com este sinal vencerás” (divisa que aparece na publicação citada).

Na língua, meu amigo, como na vida, precisamos ler corretamente os sinais.

Abraços,
Milton

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