Cruzando a 1817, pela parte de cima, colega e amigo de pré-adolescência, eu o vi: quase não reconheci de tão fustigado pela magreza. Será ele mesmo? Fui ligeiro conferir. Era. Veio alargado em abraço. Portava desagradável surpresa. Baixei os olhos aflitos sobre a calçada, após escutar dele a notícia devastadora. Estava canceroso.
Desabou sobre mim toda uma reminiscência embelezada pela expectativa e pelos anos anteriores vividos em comum. Jogávamos bola de meia, barra-barra ou pelada, curtíamos as celebrações, embandeirávamos a rua onde habitávamos, mais beco que o apelido a ela atribuído. Rua Três de Maio. Sei bem: uma ilha cercada de fábricas por todos os lados, simplório desvio à direita no meio da rua da República, esta já ladeira por onde subiam os ônibus de Bayeux cansados.
Fiquei embaraçado diante da naturalidade com que me deu a notícia, após fazer-lhe (talvez inapropriada ou intempestiva pergunta) sobre a laranja encravada no caule de seu pescoço. Mas ele respondeu sem qualquer constrangimento. Não tem medo do que possa acontecer. Afirmativa que me trouxe alento, estado de expectativa de risco levado por ele como um espirro.
Procuramos um arejo facilitado pela sombra, naquela tarde de perverso calor. Um homem acabado e mais moço que eu, parecia arrancar o calendário dez vezes somados à minha idade. Desempregado, arfante, vivendo de migalhas e adjutórios recolhidos dos amigos e aderentes. Estado de penúria. Morava num quixó de porta única, cama, fogão, janela aberta para a vizinhança miserável circundante.
O que o alegra – disse-me – é o canto de bem-te-vi de estimação presenteado por um dos moradores que de lá se mudara. Na época em que vivíamos sonhos, pouco estudava, gostava de se soltar nos preciosos convites que faz os anos largos, namorando, passeando, vivendo a idade. Faz muitos anos, o encontrei cuidando das plantas da Prefeitura, terceirizado, conformado, bem moço ainda, suado e sorridente. Sentado ao lado dele, conversava qual robô, as palavras saindo como ecos de um coração transtornado, quem sabe, em grau maior que o dele.
Conversávamos como fugitivos de uma realidade embaraçosa. Ele, porém, esperançoso em livrar-se do mal, graças às orações que fazia e a confiança na destreza de seu médico. Abriu a cartela, puxou o analgésico comparsa, que lhe encobria a dor por algum tempo. Levantamo-nos e nos despedimos.
A vida é feita de contrastes, alegrias e lamúrias. Ainda bem, pela janela de sua casinhola, entrava o canto do bem-te-vi, amenizando o sussurro e ruído de que ele padecia. Um bálsamo vivo, um prelúdio divino, o arrulho da poesia cantante que o fazia esquecer o padecimento.