O poeta Luís Vaz de Camões questiona algumas vezes, em Os Lusíadas, o descaso para com as artes, sendo o epílogo do poema o momento mais sintético e mais claro desse questionamento, sem as amenizações metafóricas de outras partes. Ao despedir-se o poeta de tão longa narração, ele expressa o seu lamento final, a respeito do fato, dedicando, ainda, 11 estrofes até o fechamento do poema (Canto X, Estrofe 145):
Nô-mais, Musa, nô-mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dũa austera, apagada e vil tristeza.
É, no entanto, no Canto V, o momento em que o poeta trabalha o conceito da rudeza do povo lusitano, a quem dirige um longo poema de exaltação heroica. Nas estrofes finais do referido canto (90-100),
Vasco da Gama termina o relato ao rei de Melinde, iniciado no Canto III. A narrativa da grande viagem empreendida, até então, tem a intenção de ratificar a grande glória do navegante, cujos feitos excedem os da ficção – Ulisses e Eneias – e os da história – Alexandro e Trajano, conforme se vê na Proposição do poema, no Canto I (estrofe 3):Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lustiano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Terminado o relato, o poeta reassume a narrativa e aproveita para lamentar-se por não haver mais “Vergílios nem Homeros”, o que deu uma bela página de D. Casmurro, de Machado de Assis, inserida no Capítulo CXXV – “Uma Comparação”. Apesar da existência de grandes heróis, nascidos da terra lusitana – “Dá a terra Lusitana Cipiões, /Césares, Alexandros, e dá Augustos” –, falta à pátria portuguesa o herói letrado – “Mas não lhe dá, contudo, aqueles dões/Cuja falta os faz duros e robustos” (estrofe 95).Trata-se de situação recorrente no poema, para lamentar a pouca cultura da sociedade e de seus líderes; sociedade imperial, de guerra de expansão, tão diferente daquelas que abrigavam guerreiros leitores, como é o caso de Augusto César (estrofe 95) – “Octávio, entre as maiores opressões,/Compunha versos doutos e venustos” – ou de Alexandre e de César, o Júlio (estrofe 96 do mesmo Canto V), origem da discussão aqui levantada:
Vai César subjugando toda França
E as armas não lhe impedem a ciência;
Mas nũa mão a pena e na outra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
O que de Cipião se sabe e alcança
É nas comédias grande experiência.
Lia Alexandro a Homero de maneira
Que sempre se lhe sabe à cabeceira.
E o poeta dá continuidade, na estrofe 97, à falta de uma liderança culta, no sentido talvez do rei-guerreiro que Platão apregoa, através de Sócrates, na República, que deve ser aquinhoado tanto com o ímpeto do ânimo, o humor colérico, quanto com o saber, a natureza filosófica (φιλόσοφος καὶ θυμοειδής, 376c):Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão-somente.
Sem vergonha o não digo: que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e a rima:
Porque quem não sabe a arte, não na estima.
Triste da nação que há muito vive esse dilema de iletrados e ignorantes no poder, sempre mostrando um espírito longe de uma governança, de uma liderança de conquista, no sentido de evolução humana, e intelectualidade, para a gerência da nação. Afogada cada vez mais na mediocridade dos que a governam, resta à população apenas lamentar, como o poeta, não só por causa da ausência de cultura, de educação e de um nível de civilização compatível com as riquezas que se produz, mas lamentar pela causa que a deixa estagnada, ignorante e miserável. Assim, são mais do que cabíveis as palavras do Velho do Restelo (Canto IV, estrofe 95):— Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
O fraudulento gosto, que se atiça
Cũa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
Além da atualidade de Camões, chama-nos a atenção o uso, nestas ocasiões aqui citadas, de uma estrutura interessante, porém, a muitos, estranha. Trata-se do que ocorre em dois versos, um no Canto V, outro no Canto X, conforme vemos abaixo:Porque quem não sabe a arte, não na estima
Canto V, estrofe 97
Não no dá a pátria, não, que está metida
Canto X, estrofe 145
Nos dois versos, observa-se construção semelhante, em “não na estima” e “não no dá a pátria”. O poeta poderia ter usado “não a estima” e “não o dá a pátria”, mas decidiu evitar um hiato mais difícil, utilizando da naturalidade da imposição fonética, traduzida na Lei do Menor Esforço, tantas vezes evocada por nós, para a explicação das transformações dos fenômenos linguísticos.
A prolação resultante da nasalidade do advérbio “não” – não a > não na; não o > não no – só é possível porque existente no sistema da língua, sendo a Lei do Menor Esforço determinada pela fonética, como uma possibilidade que permite a escolha do poeta. Segundo o linguista Fernando Venâncio (Assim nasceu uma língua, Lisboa, Guerra & Paz, 2023, p. 115), até a década de 50, na sua adolescência, na região do Minho, ele ouviu formas semelhantes, compartilhadas com a língua galega – “Quem no tem?”, “Eu bem nas vi chegar”. Esclareça-se que não se trata de uma lei ditada por gramáticos, mas pelo sistema da língua. Ainda que, atualmente, tais formas estejam destinadas ao desuso, podemos constatar como a nasalização torna a frase mais fluida, tendo em vista que todo o aparato fonético – língua, lábios, dentes – requer menos esforço de prolação em “não na” e “não no”, do que o contrário. Com isto, o poeta garante ao seu verso decassílabo, uma melodia harmoniosa, compatível com a necessidade, que ele vê desprezada, em (Canto V, estrofe 97):
Sem vergonha o não digo: que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e a rima:
Camões, que seria grande apenas por nos legar a língua portuguesa moderna, a partir da publicação de Os Lusíadas (1572), torna-se grande e gigantesco com uma poesia, épica e lírica, que continua a nos dar lições de amor à língua e à cultura.