O monumento é o livro Casa Grande & Senzala, do pernambucano Gilberto Freyre, cuja publicação está completando neste 2023 gloriosas nove décadas. Verdadeiramente um monumento sociológico, antropológico e literário, reconhecido como tal no mundo inteiro, a despeito das mesquinhas restrições feitas por alguns preconceituosos, invejosos ou despeitados de nossa USP, incapazes de enxergar inteligência e grandeza para além da capital paulista, principalmente no Nordeste, e míopes do intelecto por só conseguirem analisar o mundo e a história pelo limitado viés da luta de classes marxista, como se não existissem ou fossem possíveis outras formas de ver e interpretar a realidade tão plural. E pensar que essa obra tão importante, tão vasta e de tanto alcance foi publicada quando o autor tinha apenas 33 anos de idade,
praticamente um rapaz. Uma realização extraordinária, sob todos os aspectos. Coisa de gênio — ou quase isso, convenhamos.
Agora mesmo tenho em mãos a primeira edição da grande obra, editada em 1933 pela pequena editora Maia & Schmidt Ltda., do Rio de Janeiro. São 517 páginas, saborosa e belamente escritas, de uma inaugural explicação da “formação da família brasileira sob o regimen de economia patriarchal”. Para a época, imagino, um alumbramento, pois nada havia parecido até então. Alumbramento que continua até hoje, pelo menos para os que têm olhos para ver e sensibilidade para apreciar o estilo particularíssimo de escritor de escol, que é uma marca do autor. De fato, não se pode negar que ainda na atualidade pode-se ler Casa Grande & Senzala com um gosto e um prazer incomuns, tanto quanto à forma como ao conteúdo. Para um livro com fumos de cientificidade, realmente é um feito notável. E diria mais: notabilíssimo.
Dois intelectuais brasileiros de peso, entre outros, reconhecem o valor do livro freyriano: Darcy Ribeiro e Fernando Henrique Cardoso. Não que o livro precise disso, tendo em vista o aplauso internacional de que desfruta desde o lançamento. Mas é bom, para que se veja, aqui e lá fora, que no Brasil existe vida inteligente e imparcial, ainda que pouca. Nosso eterno “complexo de vira-lata” impede-nos muitas vezes de identificar nossos valores e exaltá-los como merecem.
Casa Grande & Senzala: em inglês, francês e espanhol
Interessante é que Casa Grande & Senzala foi obra do exílio do autor, fugido do Recife para Lisboa, no calor da insurreição de 1930, acompanhando, de navio, o então governador de Pernambuco, Estácio Coimbra, de quem era assessor pessoal. E é provável que tivesse de ser assim, pois talvez aqui no Brasil Freyre não conseguisse o sossego e o recolhimento necessários ao seu trabalho intelectual gigantesco, envolvido como estava em atividades menores. Foi preciso ele ir para longe, contemplar o país de fora e levar vida frugal de estudante para reunir as condições e o material indispensáveis ao imenso desafio que foi — e continua sendo — explicar a nossa gênese histórica e cultural, não só aos nativos, mas também aos estrangeiros, estes sempre tendentes a nos ver como vasta selva povoada por bárbaros — ou quase isso. Vale lembrar que nos idos apaixonados de 1930, os pais de Gilberto Freyre tiveram a casa invadida e depredada, com os móveis jogados pela janela, triste episódio de desnecessária violência política, da qual, segundo o filho, sua mãe nunca se recuperou.No alentado prefácio da primeira edição, o sociólogo faz a seguinte afirmação, misto de gratidão e de honestidade intelectuais: “Foi o estudo de anthropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor — separados dos traços de raça os effeitos do ambiente ou da experiencia cultural. Aprendi a considerar fundamental a differença entre raça e cultura; a discriminar entre os effeitos de relações puramente geneticas e os de influencias sociaes, de herança cultural e de meio.”. Aí talvez a chave do ineditismo da obra freyriana: o reconhecimento do valor intrínseco do negro e do mulato numa época em que a valorização do branco e até mesmo da eugenia estavam no auge. Vê-se portanto como o livro foi original, corajoso e dasafiante, sem falar em suas outras qualidades, claro.
Costumam alguns acusar Freyre, por exemplo, de deliberadamente amenizar a violência imposta pelos senhores portugueses aos seus escravos, como se os horrores inerentes à escravidão fossem omitidos por erro ou de propósito pelo pernambucano. Não sabem ler esses críticos — ou estão cegos pela má-fé. Pois Freyre não desconheceu nem negou os sofrimentos dos negros, principalmente nos duros trabalhos da lavoura canavieira. Mas ele teve a clarividência de observar que o relacionamento do português com o negro no Brasil foi diferente das relações de outros senhores em outros países, já que o lusitano, por suas características culturais e pessoais, era mais fácil de misturar-se ao elemento servil, inclusive sexualmente, dando origem, como se sabe, a uma mestiçagem que terminou por ser uma marca e um orgulho de nosso país. O chamado luso-tropicalismo (uma das descobertas de Freyre) explica tudo isso direitinho, tintim por tintim.
O próprio título do livro, ao destacar igualmente a casa-grande e a senzala, já demonstra, de cara, a valorização dada pelo autor ao negro em nossa formação. E também ao indígena, não esqueçamos. Só isto confere à obra um caráter quase sagrado para a nacionalidade brasileira, independentemente de eventuais equívocos e omissões. Freyre nunca desejou escrever um livro definitivo e perfeito. Aliás, reconhece-se, esta é uma peculiaridade de suas produções intelectuais: não serem conclusivas, não colocarem um ponto final nos debates e argumentos, serem, antes de tudo, pontos de partida, abertos à continuidade e às contribuições posteriores de outros pensadores. Gilberto Freyre, sabe-se, foi mais um gênio das intuições, dos “insights” e das provocações que das conclusões dogmáticas e autoritárias.
E foi tão autêntica essa sua sempre explicitada reverência aos negros que, em viagem à Africa, fez questão de ter, para fins de estudo, afirmou talvez malandramente, relações sexuais com uma legítima africana, tudo com a prévia e devida autorização de dona Madalena, mulher altaneira e de larga visão.
Não se desconhece as opções ideológicas e políticas do pernambucano, apoiador e crítico (sim, porque ele não concordou com tudo) dos militares de 1964. Era um direito democrático dele, mesmo que naquele momento não tivéssemos uma democracia. Direito que lhe era — e é - negado pelos eternos defensores do pensamento único, de resto tão totalitário quanto os seus congêneres de todos os tipos. Freyre pagou — e ainda paga — um alto preço por essas opções. Ainda hoje boicotam a sua obra e o seu original e não raro genial pensamento.
Mas o tempo trabalha a favor do senhor do Solar de Santo Antônio de Apipucos, tão ligado à nossa Paraíba, não só através do casamento com uma valorosa paraibana, mas também através de grandes amigos, como Zé Lins, Odilon e José Américo. Casa Grande & Senzala é um clássico brasileiro e universal. Um monumento da criatividade e da inteligência humanas. Só faz e fará crescer em reconhecimento à medida que o tempo passa e desaparecem os pigmeus que insistem em roubar-lhe, burra ou malevolamente, a natural grandeza que é sua — e ninguém toma.