De um mero costume, se tornou uma tradição. Mané Juvino juntava seus netos nas tardes de sábado para uma verdadeira contação de histórias. Antes disso, além de almoçar, ele se estirava na rede e dava um bom cochilo. Era tempo em que seus cinco filhos iam deixando os netinhos em sua casa e saiam para resolver outros assuntos até o fim da tarde, quando a farra do avô com a gurizada findava.
Um a um ia chegando e se sentavam em uma mureta baixa que dividia o terraço arejado do florido terreiro. A casa ficava na ponta da rua e possuía farto espaço, Mané chamava tudo aquilo de sítio, recordando sempre com emoção a sua infância no interior, um pé de serra lá no sítio Logradouro, onde seu pai tomava conta da fazenda Santana do coronel Chico Salustiano. Mas parecia mesmo sítio. As paredes pintadas com um tímido verde, o chão em cimento queimado no tom vermelho, bem friozinho, bom de ficar descalço, e caqueiras dependuradas nos caibros com todo tipo de planta da região. Ao redor da casa, um cajueiro e uma aroeira ofertavam a sombra e flores de todos os tipos alegravam o ambiente.
Por volta de umas duas e meia ou três horas, Mané Juvino ia despertando. O sinal daquele momento era uma tossida tímida que engrossava de repente, pigarreada, que o acompanha desde que fumava o cachimbo velho. O murmurinho dos onze netos era certo, a alegria também. O maiorzinho vinha com o chinelo do avô. Ainda despertando, Mané senta na rede, estira os braços pedindo ajuda e todos correm, se dividindo nas duas mãos, para levantar o avô. Cá pra nós, nem precisava, mas naquilo continha o ensinamento de servir e ajudar os mais velhos. Maria de Chico, sua esposa, traz uma xícara fumegante de café; seus netos já tinham pedido a bênção lá na cozinha. E Mané começa: – Essa história que vou contar é alegre e triste, para a curiosidade da meninada. É que lá perto da fazenda em que eu morava, no sítio Logradouro, tinha um camarada muito engraçado e aqui veio a lembrança de quando ele morreu, bichinho. Era um cabra folclórico, muito especial, não havia ninguém que não o conhecesse na região. Seu nome era Zeca Matuto. Nunca teve esposa e sempre morou sozinho, sequer teve filho.
Um dia me mostrou com orgulho sua carteirinha de filiado ao sindicato dos trabalhadores rurais de Cacimbas, o que no futuro ia garantir sua aposentadoria. Trabalhava pesado. Cansei de vê-lo mourejar o dia todo a enxada, preparando roçados, plantando como um condenado. Mas sua vida não se confinava no duro da labuta, da vez que foi ao Rio de Janeiro entrou em uma partida de futebol e arrebentou. Todo mundo gostou dele e um cabra lá queria que ele fizesse um teste no Bangu, pois além de habilidoso era bronco por natureza e, foi-não-foi, sapecava um carrinho ou causava falta mais dura. Voltando ao Logradô (como ele dizia), organizou um time de pelada vermelho e branco em homenagem ao Bangu. Disse que tinha jogado muito e sido campeão carioca, era uma forma de atrair participantes. Se orgulhava de uma bem cuidada e enfeitada bicicleta, improvisando até farol e buzina, novidade da época. Ninguém podia tocá-la, o ciúme era grande.
Fazia todo tipo de brincadeira e participava das quatro festas do ano com afinco. Se era Semana Santa, fazia um judas com capim elefante e corria por todo o povoado. Se era carnaval, vestia-se de papangu cheio de chocalhos, assombrando as crianças mais novas e levando carreira dos cachorros, uma graça só. Na folia de reis, acompanhava a bandinha do maestro Vilô, no São João era puxador de quadrilhas; sua presença era marcante na vida do lugar. Se tinha uma semana morgada, enchia a cara na bodega de Biu e saía bagunçando no meio da rua até levar umas bordoadas, só para não ver a monotonia. Vaquejada era certa sua presença e certa vez em um circo que chegou, virou malabarista e quase foi embora acreditando em seus dotes artísticos.
– Mas vovô, como ele era tão animado. Mas porque morreu?
– Ah minha neta, era alegre pra fora, mas infeliz por dentro.
Quando fechava a porta de seu barraco e acendia o candeeiro, muitas vezes dava pra ouvir seu choro de tristeza. Com isso, foi perdendo a noção da realidade e a demência tomando conta de seu reino da fantasia.
Numa das últimas vezes que o encontrei, estava sujo, maltrapilho, vestido com vários farrapos montado em uma vassoura dizendo ser Napoleão e que ia conquistar o mundo. Foi quando o levaram para uma clínica de loucos e por benevolência cristã pôde ainda ser interno no asilo dos Vicentinos onde foi bem cuidado.
A partir de um certo dia começou a recusar a comida e foi definhando, definhando, até nosso bom Deus o libertar para o reino dos céus. Esse foi Zeca Matuto, sempre lembrado com saudade. Barulho de carro e, naquele momento, os pais da gurizada começam a chegar. “Agora venham dar um abraço em vovô e tome um docinho que comprei na rua”, êhhhhhh. O vento sopra frio e leva com ele mais um sábado feliz.